quarta-feira, 6 de julho de 2016

FUJÃO

Seu Silvestre, de 75 anos, chegou ao ambulatório segurando um guarda-chuva. (Hoje, em pleno mês de julho, choveu por aqui.) Queixava-se de dores nas pernas quando andava. Por ter sido fumante por longo período, até 25 anos atrás, o médico do bairro supôs para ele uma doença arterial obstrutiva. Por isso o encaminhou a mim. (Não conheço o médico do bairro nem ele a mim.)
Palpei-lhe os pulsos. Eram bons pulsos. “Será mesmo que este homem está com obstrução nas artérias das pernas?”, pensei. Para dirimir a dúvida era aconselhável examinar-lhe os pulsos após ele dar uma boa caminhada, de preferência até que viesse a dor.
–“Seu Silvestre, façamos o seguinte. O senhor ponha a sua sombrinha ali no canto da parede, saia ali fora no corredor, por favor, e ande bastante, até começar a sentir dor. Quando ela vier, volte aqui rápido para que eu lhe examine novamente. Pode entrar sem bater, que eu vou continuar atendendo outras pessoas...” Ele saiu e chamei outro paciente.
Depois atendi outro; depois mais outro; e ainda mais outro... e nada do Seu Silvestre. Saí ao corredor a procurá-lo, e nada do Seu Silvestre. Havia muita gente no corredor, mas não seria difícil identificá-lo, ainda que fosse a primeira vez que nos víssemos. Olhei para um lado e para o outro várias vezes e não avistava o homem. Entrei de volta aos consultórios e comentei com as meninas, as atendentes:
–“O homem sumiu... foi-se embora...”
Por um momento supus não ter sido bastante claro em minhas instruções, e que talvez ele houvesse resolvido mesmo ir embora de uma vez. “Esse doutor é doido varrido!”, estaria pensando. “Mandou-me embora assim, sem mais nem menos...”, teria concluído.
Ainda atendi outro paciente antes de voltar outra vez ao corredor à procura de Seu Silvestre. Tornei a entrar, desta vez na sala defronte a minha onde atendia Dr. Ivan, o proctologista. (Os proctologistas até hoje me perseguem, mas tenho por eles um carinho todo especial.) Contei-lhe o ocorrido, já nos divertindo com o mal-entendido. As atendentes gargalhavam, outros pacientes que aguardavam entrar noutras salas se riam. As portas estavam entreabertas e já todos ouviam a história. Quando saí da sala do amigo, lá estava ele, Seu Silvestre, rindo-se porque ouvia tudo da pilhéria, parado defronte à porta de minha sala. Caçoei dele em tom de brincadeira:
–“Onde o senhor se meteu, homem? Estávamos preocupados...”
Foi quando ele saiu a explicar que saíra do hospital e dera não sei quantas voltas no quarteirão, e que só agora começara a sentir uma muito leve dorzinha nas pernas.
Coloquei-o na mesa de exame. Os pulsos estavam lá, amplos e saudáveis como os de um garoto travesso. Concluí, então, que o jovial idoso não tinha doença arterial nenhuma e saímos a investigar uma outra causa. 
Quando saiu, fiquei com a nítida impressão de que ele foi para casa feliz da vida mais por conta do gracejo do que pelo fato de ter artérias ainda saudáveis. O corpo humano é uma fonte inesgotável de sintomas. 

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