quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O ZURRO DOS INCONFORMADOS

“Você reclama da corrupção, mas usa transporte irregular”. Essa era a mensagem escrita em adesivo colado ao vidro traseiro do táxi. Não havia dúvida – o recado indicava a continuidade do embate entre os taxistas e a Uber.
Agora, vejam como funciona a cabeça do brasileiro diante da concorrência. Não é de hoje. Os poucos e escassos leitores mais entrados em anos hão de se lembrar da tal “reserva de mercado”. Aos mais jovens leitores – esses são os que verdadeiramente me faltam – explico. Os computadores produzidos e fabricados no Brasil eram tão ruins que os empresários do setor conseguiram, junto ao governo, a que se proibisse a entrada e venda desses produtos no país, a importação de bons produtos estrangeiros. Resultado: enquanto noutros países a indústria da informática crescia, a nossa patinava na mesquinhez e má qualidade. Apesar da evidência gritante, o bom e pacato brasileiro julgava ser isso excelente. Afinal, estávamos “protegendo” a nossa indústria. Eis aí, em mínimas palavras, como eram, ou são, os processos mentais tupiniquins.
Não passava pela cabeça de ninguém – e se passasse seria brutalmente reprimida – a ideia de que, para beneficiar um mísero e único setor, estávamos condenando toda uma nação ao atraso. E assim anos e anos se passaram. A proibição só não foi mais longa do que a obrigatoriedade da “Hora do Brasil” nas rádios nacionais.
(Observem que a “reserva de mercado” existiu por força de lei, donde se conclui que a lei pode azurrar qual o jumento a pastar na caatinga de nosso famigerado e indesenvolvível Nordeste. O idiota mostra toda a sua idiotia e força quando se ergue ao topo do poder. Tudo isso está claro como a água das chuvas.)
Coisa semelhante acontecia com a indústria automobilística. Carros fabricados lá fora não podiam ser importados, até que veio de lá o famigerado Fernando Collor de Melo e, taxando o carro nacional de “carroça”, abriu o mercado brasileiro aos veículos estrangeiros. (Bem se vê que mesmo o canalha mais abjeto tem lá o seu momento de glória.)
Pois voltemos ao taxista do adesivo. Em sua cabeça, não importa que toda uma cidade fique à mercê de sua tabela e de seu taxímetro como única forma de transporte alternativo. Afinal, seus maiores concorrentes são o ônibus, a van e o moto-táxi, esses últimos uma invenção tipicamente brasileira, se não me engano. (Com efeito, não há, de fato, uma concorrência direta, já que estes atendem a um outro tipo de público. As vans, os ônibus e os moto-táxis concorrem entre si, mas não com o táxi.) Faltava justamente o concorrente a este e eis que aparece, importada dos Estados Unidos da América, a ideia do veículo alternativo ao táxi e mais barato do que este – a Uber.
Foi um festival de cólicas e uivos de lobos ferozes. Nosso prefeitinho – o homem é médico, mas quem disse que educação técnica credencia o sujeito ao bom senso e à sensatez? – apressou-se, focado em sua reeleição e, portanto, em seu futuro político, a apoiar abertamente a perseguição à Uber e a dar garantias aos taxistas de que a empresa seria impedida de atuar. Punha-lhe na ilegalidade antes mesmo do sol raiar sobre o seu segundo mandato. Supunha, talvez com conhecimento de causa, uma classe mais numerosa de taxistas. O fortalezense, muito provavelmente o fortalezense do ônibus, da van e do moto-táxi, em seus obscuros critérios para escolher seu prefeito não deu a mínima, e reelegeu o pequerrucho ao Paço Municipal. Outros fatores que me escapam hão de ter contribuído a esta escolha.
(Depois do início da instituição da reeleição, o brasileiro não faz outra coisa na política que não seja reeleger alguém. A justificativa sempre aventada é o temor de mudar. Vejam. A tragédia está posta, mas o eleitor tem medo de mudar. Não lhe ocorre que mudar é bom, mudar é ótimo, mudar é a melhor maneira de dizer a um executivo do poder que “você já fez um bom trabalho, mas outro pode fazer melhor”; ou “você fez um trabalho medíocre e por isso deve sair”; ou fazê-lo simplesmente entender que aquele gabinete não lhe pertence.)
O que dizia o adesivo do taxista? (Vi-o hoje voltando do hospital.) Dizia que a ilegalidade da Uber era ponto pacífico e que quem a usa é tão corrupto como o senhor Lula da Silva ou tão infrator da lei como os que fazem caixa dois para se eleger. Ora, quem se utiliza da Uber quer, apenas e tão-somente, pagar mais barato para se deslocar. Nada mais, nada menos. A pretensão da ilegalidade da Uber é semelhante a lei que impôs a “reserva de mercado” que idiotizou e atrasou o país, uma lei que foi engendrada para satisfazer o interesse de uns poucos em detrimento do interesse da maioria. Isso nada tem a ver com corrupção. A retórica que tenta criminalizar a concorrência é a única maneira que os taxistas encontraram para combater a “ameaça” a seus interesses. Não consideraram, em nenhum momento, ao que parece, se reinventar e concorrer com lealdade e espírito de livre iniciativa. Apegar-se ao governo é sua atitude. É a isso que se chama “capitalismo de comadres”? Sim, são os mesmos e velhos processos mentais tupiniquins.        

terça-feira, 1 de novembro de 2016

OS QUE SÃO FELIZES SOZINHOS

              Outro dia falei sobre os critérios usados pelo brasileiro à hora de escolher em quem vai votar (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2016/06/cabecas-de-vento.html). O que não leu há de querer saber: quais são esses critérios? Direi ao leitor que não leu apenas o seguinte – o brasileiro insiste em querer ser feliz sozinho. Por exemplo.
                Outro dia peguei o táxi ali, defronte ao prédio. O motorista era o João Mesquita, ferrenho e recalcitrante torcedor do Fortaleza Esporte Clube. Além de sofrer há anos com as pauladas que seu time leva, tendo estado e permanecido na série C do campeonato brasileiro de futebol e dando toda a pinta que de lá não sai tão cedo, sofria o João Mesquita com a possibilidade de vitória do Capitão Wagner, candidato da oposição à prefeitura desta horrenda capital do Ceará. E por que sofria ele? Simples: – os taxistas estavam se pelando de medo do Capitão porque o homem pretendia permitir a existência do Uber na cidade.
                    (Outros fortalezenses também sofriam com a possibilidade de eleição do Capitão por motivos diversos, todos eles passíveis de serem colocados na pasta de suas mentes chamada de "Neuroses". Tanto é assim que li, na rede social, um expoente advogado local expressar seu pavor de que a eleição do candidato viesse a "militarizar" a política municipal. Até o momento em que escrevo essas linhas, não consegui, dada minha limitada inteligência, entender o que o senhor advogado pica-grossa quis dizer.) 
                “Doutor, o senhor ‘num’ acha qu’eu tô certo? Esse Uber é ilegal, é tudo fora-da-lei... o senhor ‘num’ acha?...”, indagava o João Mesquita, ao invés de prestar atenção no trânsito.
                E eu, para não dizer umas verdades na cara do amigo, assentia: –“É mesmo, né João...?”
                Todos sabem que o Uber oferece transporte mais barato para todos, mais barato que os táxis. Não é nada difícil entender o porquê disso. É muito simples: o negócio de táxi tornou-se um bom negócio para uns, e um negócio não tão bom para outros. De uma forma ou de outra, o Uber sai bem mais em conta para o consumidor justamente porque é um negócio enxuto e, claro, prescinde do governo para o seu funcionamento. O governo, todos sabem, só serve para atrapalhar e encarecer os negócios.
                Se consultarmos o site do SEBRAE, encontraremos o seguinte sobre os táxis:“No Brasil, os carros que prestam este serviço são autorizados a trabalhar através de licenças emitidas pelas Prefeituras, bem como os taxistas (condutores autorizados) só podem exercer a atividade após credenciados no órgão municipal de trânsito responsável. Portanto, para se tornar um taxista (condutor credenciado) o interessado em exercer a atividade irá precisar de um carro também licenciado. Como o número de interessados (condutores), em geral, é superior as licenças disponíveis (Permissões ou Alvarás como também são conhecidas), comumente estas licenças adquirem um valor de mercado elevado em algumas cidades, podendo chegar a cerca de R$ 300 mil, dependendo do tipo (livre ou privativa) e do ponto de estacionamento”.
                Segundo reportagem do marrom Diário do Nordeste, uma permissão em Fortaleza pode variar entre 45 e 120 mil reais, dependendo do ponto (http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/cidade/venda-de-permissoes-de-taxi-chega-a-r-120-mil-1.39916).
                Assim, a prefeitura “vende” as licenças e essas podem ser negociadas ou exploradas numa espécie de mercado secundário, o que leva frequentemente à sua “valorização”. A prefeitura, que não é besta, estabelece quantas permissões irá negociar no “mercado” de tempos em tempos a fim de equalizar a demanda com a oferta à população, e “regularizar” os taxistas “clandestinos” (http://g1.globo.com/ceara/noticia/2015/09/prefeitura-diz-que-vai-criar-mais-2-mil-vagas-de-taxis-em-fortaleza.html). Evidentemente que este custo é repassado ao usuário do táxi na hora da “bandeirada” e no valor do quilômetro rodado.
                Como nada disso existe para o Uber, claro está que o usuário é o grande beneficiado com a chegada dessa alternativa de transporte: o serviço prestado à população é muitíssimo mais barato. Por isso a nova forma de transporte privado tanto incomoda aos detentores de permissões, aos motoristas de táxis e à prefeitura. Eles não estão preocupados com o custo de quem vai pagar pelo serviço – estão preocupados em ser felizes sozinhos. Eis aí tudo.
                Vejam que parecia bem justificada a grande apreensão do João Mesquita quanto à eleição do Capitão.
Contudo, não, não estava tão bem explicada assim. O caso é que o candidato à reeleição à prefeitura de Fortaleza anunciava aos quatro ventos, como o típico brasileiro protecionista com horror à concorrência e à livre iniciativa: –“O Uber é uma empresa americana que não paga impostos e explora motoristas brasileiros”. E bradava: –“Vamos multar, apreender”! (http://blog.opovo.com.br/politica/prefeitura-continuara-multando-e-apreendendo-carros-do-uber-diz-rc/) O outro candidato, como já disse, discursava favoravelmente à livre concorrência.
                Agora, vejamos. Em que se baseia este prefeito ao falar de “exploração do brasileiro pelo ianque predador”? se aqueles que se associam à empresa norte-americana têm um faturamento que lhes permite uma vida digna e feliz no trabalho? Ao que sabemos, os explorados não são felizes nem conseguem ter uma renda que lhes permita satisfazer as necessidades de suas famílias. A mim me parece que o discurso do senhor prefeito foi semelhante, quase idêntico, àquele que talvez tenha declamado aos tempos dos bancos universitários, ali no Centro Acadêmico XII de Maio, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará; um discurso tipicamente esquerdista, populista, vazio e cheio do fôlego teórico das ideias estúpidas que já cansamos de ouvir. (Ia esquecendo de dizer que o senhor prefeito é médico.)
                Naquilo que considero um ato falho do senhor prefeito, queixar-se de que a empresa norte-americana não paga impostos só não é infantil porquanto é maldoso e mais uma vez populista, além de mentiroso. A empresa paga lá os impostos devidos, sim, mas não à prefeitura como ele bem gostaria. Por deixar de arrecadar para seus cofres é que ele vocifera, isto sim. Digamos logo que isto não nos faz nenhum mal, ao povo, como bem pode algum de seus aliados mais à esquerda alegar: o número de pessoas gerando renda para suas famílias nesta atividade prescinde do cuidado e da preocupação da prefeitura. O senhor prefeito mostra mais uma vez seu alinhamento com as ideias populistas que exalam que o Estado quer e deve cuidar das pessoas, o que já se mostrou dos maiores enganos que o mundo já viu.
                E João Mesquita, o motorista? Bem... a essas alturas deve estar empanzinado dos festejos pela vitória, pela reeleição do senhor Roberto Cláudio – ia também esquecendo de dizer-lhe o nome – à prefeitura desta decadente cidade. Para ele não importa que o cliente pague mais caro por uma corridinha em seu táxi. Afinal, a concorrência está a um passo do banimento. Àqueles que se beneficiam do negócio dos táxis interessa a própria felicidade. E todo um povo que se esculache e pague bem caro. O brasileiro vota na própria desgraça e para o bem dos que são felizes sozinhos.    

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

BRASILEIRO INDO E VOLTANDO

Não sei se sabem da última do Amorim. Pois vos conto.
                Após perder a empresa que havia montado há anos, principal fonte de renda de sua família, dilapidou o patrimônio que acumulara em sua previdência privada. Ainda que tenha diploma de curso superior, é, além de homem de negócios, funcionário público nível médio e foi justamente isso o que sobrou de tudo o que chegou a construir um dia. Resultado: está na quase completa penúria financeira. Faliu. Quebrou em banda, como se diz por aqui.
                Dirá alguém que o pobre homem foi vítima de uma desgraça, ou que a má sorte achegou-se a ele como se ela, a má sorte, andasse por aí, a esmo, a escolher vítimas indefesas e pueris. Uma certa dose de romantismo sempre paira sobre as tragédias pessoais do brasileiro.
                Digamos sem delongas que o leitor já anseia um esclarecimento: Amorim foi, sem sombra de dúvidas, o grande causador de seu próprio infortúnio. Tempo houve, já que seus maus atos foram praticados ao longo de uns poucos anos, em que os amigos tudo fizeram para salvá-lo de si mesmo, sem sucesso. Conselhos não faltaram; alertas foram dados; evidências brilharam e saltaram aos olhos como luzes vermelhas a indicar o perigo... Tudo em vão. Amorim caminhou para o abismo sem dar a mínima atenção. Agora, no presente, o arrependimento. O diabo é que o arrependimento é um sentimento estúpido porquanto denuncia a estupidez de quem o experimenta. Eis aí tudo. De fato, eis aí tudo sobre a tragédia pessoal de um mísero brasileiro inconsequente e irresponsável. Imaginemos, agora, a tragédia de toda uma nação de irresponsáveis.
                Antes de tudo, assumamos a irresponsabilidade do brasileiro como um traço inato e irremediável. Se assim não o for, é bem provável que cedo, ainda na mais tenra infância, o brasileiro aprenda por seus pais a como ser irresponsável ou por rejeitar-lhes os ensinamentos. É uma coisa ou outra. E por que digo isso? É muito simples. Tudo guarda a mais irretocável semelhança com o que Amorim providenciou a si mesmo. Senão, vejamos.
                O brasileiro nasce e cresce longe de uma adequada e cada vez mais necessária educação financeira. Neste aspecto, salta aos olhos outra ignorância – a ignorância fiscal. (Seria uma ignorância dentro da outra.) O que seria ela? O brasileiro cresce, vai à escola e à universidade sem que lhe ensinem que ele paga impostos desde o dia em que comprou a primeira goma de mascar com o dinheiro que lhe deu sua mãe. Um pouco mais à frente, quando começa a ganhar dinheiro, percebe que ali, bem ao seu lado, está um sócio que em breve se mostrará indesejável e não menos implacável – o governo. Assim, na experiência inolvidável da vida prática, aprende o brasileiro que parte do que ele ganha vai diretamente para o governo sem que ele nada possa fazer para impedir, e que essa associação indesejável durará enquanto viver.
                (Óbvio é que impostos não existem apenas no Brasil. Todas as grandes nações do mundo são governadas por governos que arrecadam bem. A única e abissal diferença é que arrecadam com mais justiça e os devolvem com mais justiça ainda. Com efeito, nas nações mais desenvolvidas do mundo o crime de sonegação é considerado um crime que traz vergonha e execração ao seu praticante, além de punição exemplar.)
            Ora, para que arrecada o governo? Como bem disse a senhora Thatcher, não existe o dinheiro do contribuinte. O que existe são os impostos, que é a parte do que ganha o cidadão devida ao governo para que ele o use naquilo que prevê a sua Constituição. O governo financia serviços de educação, saúde, infra-estrutura, etc. etc. etc.
            E o que ocorre se o dinheiro do caixa do governo for utilizado em outros “setores”? Resposta: não haverá ou faltará dinheiro para aqueles serviços. Os serviços públicos serão penalizados. Faltarão serviços de saúde e educação, e a infra-estrutura resultará precária. Quem tem família e gere seus recursos sabe bem do que estamos falando. 
            Apesar de todos saberem do que estamos falando, o brasileiro insiste em não entender a necessidade do governo em controlar seus gastos quando suas despesas estiverem bem acima de suas receitas. O brasileiro recalcitrante e irresponsável acha que o governo é obrigado a gastar o que não tem indefinidamente somente porque está escrito que ele é detentor de todos os direitos possíveis e imaginários. Acha que isso pode ser feito inconsequentemente, justamente como fez o Amorim. 
            Todos nós sabemos que não é assim. Nada é gratuito. Essa história de que a prefeitura está oferecendo cursos grátis de culinária e de corte e costura é a grande balela de governos falaciosos e populistas. Para promover e oferecer qualquer serviço o governo paga, e paga com os recursos vindos dos impostos. Se promover curso de corte e costura para o povo é mais importante do que promover os serviços essenciais, a população há de decidir, mas essa população há de se conscientizar que há dinheiro envolvido e que esse dinheiro veio dos impostos pagos por todos. Se gasta aqui, pode faltar acolá.
            O diabo é que o Amorim, além de um irresponsável de marca maior, é um refinado esquerdista que perdeu o bonde da história. (Todo esquerdista é, antes de tudo, um atrasado do bonde da história.) Ainda que em sua vida privada venha sentindo na carne o preço de sua irresponsabilidade para com os recursos de sua família, pensa ele que na vida pública ele tem direitos inalienáveis e “garantias” inamovíveis. 
            Não devemos nos assustar – todo bom e irresponsável brasileiro se acha o sujeito mais cheio de direitos do universo. Sim, o brasileiro tem incontáveis direitos. Mesmo que os recursos sejam limitados – o governo sempre pode imprimir mais dinheiro, ainda que as consequências sejam catastróficas –, o brasileiro há de exigir do governo todos os direitos que lhe dá a Constituição “cidadã”.  Afinal, ela foi concebida para dar-lhe tudo aquilo que ele imaginava não ter e mais um pouco. Os que a conceberam esqueceram-se de providenciar a mina de ouro inesgotável. O resultado está aí para quem quiser ver. Amorim é o exemplar mais fiel do bom e repleto-de-direitos brasileiro da atualidade.
            Fiz todas essas considerações e relatei a tragédia do amigo apenas e unicamente para sugerir a todos que façam, antes de seguir exigindo a miríade de direitos que julgam ter, um curso de obrigações e deveres. Outro dia vi ali, na livraria, um compêndio de Direito. Estão aí os espessos tratados de direito versando sobre todas os campos desta ciência tão especial. Pois me veio à ideia propor que se escreva um “Tratado de Deveres e Obrigações” especialmente dirigido ao bom e irresponsável brasileiro médio. Não havia de ser um livro grosso, mas um volume fininho e tímido cujo denso conteúdo servisse a equilibrar essa balança tão mal aferida. Sim, o brasileiro esqueceu-se de que as obrigações vêm primeiro e que os direitos são a contrapartida daquelas. Para se ter direitos há que se cumprir, primeiramente, as obrigações. Liberdade é um direito, um direito natural de todo ser humano, incluídos aí os brasileiros. Para mantê-la como um direito, contudo, o indivíduo há que cumprir, pelo resto da vida, certas obrigações inarredáveis. Caso contrário, irá perdê-la. Mesmo isso, mesmo a liberdade, se tornou, para o brasileiro, um direito irreversível e inexorável, independente de que cumpra ou não com suas obrigações. Quer ele agir como homem das cavernas e seguir gozando do direito e de ir e vir e a sociedade civilizada que imploda.
            Daí porque não é difícil entender a pretensão de meu amigo a que o governo, como ele, continue a gastar ainda que suas contas não permitam à luz da sensatez e da responsabilidade.  Por tudo isso não é difícil entender como pensa o tipo de gente que ataca um governo que quer a responsabilidade fiscal. São brasileiros natos, indo e voltando.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

O PIOR SUICIDA É O QUE NÃO MORRE

Há os amigos que reprovam a motocicleta. Quero dizer, reprovam seu uso como meio de transporte. Agora, vejam como é interessante notar que, de uma forma geral, o ser humano é um bicho dotado de todas as possíveis miopias. A miopia, todos sabem, é uma condição que dificulta a visão para longe. O sujeito enxerga tudo a um palmo do nariz; porém, além disso, tudo é nebuloso, tudo é indiscernível, tudo é confuso. E não somente os amigos, mas uma China inteira de gente considera a motocicleta uma ferramenta absolutamente reprovável, como se a pobre motocicleta, um ser absolutamente inanimado, fosse capaz de se esculachar ao chão porque acordou de mau humor.
          Por outro lado, há aqueles que não veem na motocicleta o menor perigo, a menor necessidade de maiores cuidados ao seu uso. Por exemplo, não sei se já perceberam, mas o motoqueiro fortalezense é o sujeito mais ocupado da cidade. Sim, não há uma classe de pessoas, de trabalhadores, mais ocupada que a classe dos motoqueiros. Têm tantos e tantos afazeres que estão sempre atrasados para o próximo compromisso. Por isso, presumo, estão sempre a correr, a ziguezaguear, a furar o sinal, a subir a calçada de pedestres, a trafegar na contra-mão, enfim, a se utilizar de toda possível artimanha que encurte seu trajeto e seu tempo nas ruas. É notável, em consequência desse comportamento, o desamor do motoqueiro fortalezense por sua própria vida. Se se detesta tanto a si mesmo, que dirá a seu semelhante. Se menospreza tanto a própria vida, que dirá do sentimento que nutre pelas leis e pela autoridade.
          Assim, eis que acabam por se contrapor o míope e o irresponsável. O míope se torna míope porque se utiliza da lente de visão utilizada por essa súcia de motoqueiros que perambula pela cidade como uma chuva  de mosquitos tóxicos. Eles, os míopes, não percebem que a motocicleta é mortal porque o motoqueiro assim o é. E ponto final. Eis aí a constatação da miopia de toda uma China: o problema não é a máquina, mas o seu operador.
          Entre míopes e irresponsáveis está justamente o motociclista consciente, aquele que se utiliza daquilo que a motocicleta oferece de melhor: economia, ecoamizade, rapidez responsável, geração de maior espaço nas vias, menor custo do estacionamento... Dentre eles fico com os primeiros dado que sua miopia não contribui para o aumento das contas públicas em gastos com saúde, nem com o pagamento de seguros utilizados em ausências evitáveis no trabalho ou em mortes, nem em concessões de aposentadorias precoces para inválidos. A miopia do míope apenas e tão-somente prejudica sua visão da inteireza da realidade. Ele culpa o objeto ao invés de culpar o verdadeiro (ir)responsável: o motoqueiro suicida-homicida-autoflagelador-lesionador corporal. 
          Nada disso teria a mínima importância se o motoqueiro troglodita fosse única e exclusivamente um suicida. A parte suicida de sua irresponsabilidade seria a única desejável do ponto vista da sociedade. Dirá alguém que menosprezo o suicida, já que o brasileiro confessou-se, durante os últimos catorze anos, o cidadão campeão de justiça social em todo o globo, dado a interpretar a irresponsabilidade alheia como uma mera resposta à sua exclusão social ou uma consequência de sua falta de oportunidades. O suicida seria, aos olhos do bom brasileiro, uma vítima de todos. Eu, que não sigo a manada em sua correria ao abismo, penso que o suicida é, antes de tudo, um corajoso, um desesperado, um sofredor incurável... Acima de tudo, o suicida anseia por terminar aquilo que já não tolera: a própria vida.
          Mas, vejam que coisa interessante. Numa visão schonpenhaueriana, ao suicida parece faltar apenas um dos instintos básicos da preservação da vida: o medo da morte. Tudo indica que a coragem de causar a própria morte, o desespero em viver, ou o sofrimento que sofre na vida são maiores, bem maiores nesses indivíduos que o medo de morrer. O motoqueiro suicida ou, melhor, o motoqueiro fortalezense, ao contrário, não se sabe suicida. A princípio, em nada se assemelha ao sujeito que sobe quinze a vinte andares de um prédio na intenção precípua de dar cabo da própria vida. Não, a princípio não. O motoqueiro fortalezense assemelhar-se-ia ao suicida do edifício apenas à hora do salto irreversível. As manobras irresponsáveis do motoqueiro são o equivalente ao salto daquele. A única diferença entre o salto do suicida consciente e o passeio do suicida inconsciente é que este último apenas flerta com a morte. Sim, cada vez mais perigosamente o motoqueiro irresponsável flerta a morte como a desafia-la. O salto é 100% mortal, ao passo que as peripécias do motoqueiro nem tanto. A volição do motoqueiro torna-se, assim, a medida de sua timidez, de seu acanhamento em morrer. É exatamente neste momento que o motoqueiro mostra-se um canalha de marca maior.
          Se morresse logo, antes de se fazer vítima mutilada a dar despesas e trabalho para a sociedade; se logo morresse antes de matar ou mutilar terceiros; se morresse de imediato antes de danificar o patrimônio público ou privado, o motoqueiro irresponsável seria o mais perfeito e o mais venerável suicida. Traria dor apenas àqueles que o amam. (Sim, não somente os brutos, mas também os idiotas amam.) Pouparia o resto de nós de sua frustrada utopia com a campa. Eis aí as razões que me levam a afirmar que o lado suicida do motoqueiro irresponsável é o único desejável. Mesmo sua mutilação pessoal é execrável e digna de forte reprimenda, na medida em que traz ônus social. Daí porque as autoridades constituídas deveriam providenciar imediatamente um meio de proteger a sociedade da ação nefasta e deletéria desses pusilânimes fracassados do suicídio, protegendo-os de si mesmos ao trancafiar-lhes em prisões de segurança máxima.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

MINHA INTUIÇÃO ME DIZ QUE NÃO...

            Confesso: procurei exaustivamente – escrutinando currículos, histórias e estórias – um candidato a prefeito que preenchesse aquilo que considero o mínimo necessário para exercer o cargo. Ora, mas quem sou eu? Nada sou, eis a verdade. Sou apenas mais um mísero eleitor em meio a esse caos de ideias e de pretensões individuais e, quem sabe, de pretensões coletivas.
            Confesso ainda mais: não assisto à propaganda política de nenhuma espécie. Perguntar-me-ão, então, como teria sido essa procura. Diria que me utilizo, principalmente, dos fatos e da intuição nesta penosa busca. Haverá alguém que dirá que a intuição não é uma boa conselheira, ou que a intuição não se vale de dados concretos, ou o que quer que seja que tente diminuí-la como ferramenta de escolha e decisão. Alguém já disse, acho que um financista, que “a intuição é, na verdade, um monte de conhecimento acumulado que fica escondido”. Então, eis aí tudo: utilizo-me do conhecimento escondido que tenho. (Se bem me lembro, disse também o financista que esse conhecimento nos fica escondido no subconsciente, ou onde quer que nos caiba na mente, ou sabe-se lá onde. Entretanto, não há que duvidar – ele está lá.)
            Ainda assim, não nos prendamos tanto a ela. Fiquemos com os fatos contra os quais, como diz o chavão, não há argumentos. Há contra os fatos apenas uma, e somente uma, inconveniência – sua abundância. Sim, abundam os malditos fatos. São tantos, e tantos, e tantos que quase desisto de continuar. Escolhamos, assim, uns poucos deles para seguir nessa tentativa de explicar meus critérios na procura deste ser etéreo que é o candidato a político. (Notem que alguns candidatos, a maioria quero crer, já são políticos, ao passo que outros estão se candidatando precisamente a isto – a ser político. Este último estará se aventurando pela primeira vez. Evitemos entrar a falar do que dizia Aristóteles sobre ser o homem um animal eminentemente político, que a coisa pode ficar muito complicada.)
            Há, nesta cidade, uma penca de fatos... ou melhor, uma penca de absurdos a vicejar em seu dia-a-dia e que passaram ao largo das discussões e discursos dos senhores candidatos a prefeito. Por exemplo, a ocupação diária indiscriminada e criminosa dos espaços públicos por vendedores ambulantes; por exemplo, o caos no trânsito ocasionado por motoristas e motociclistas que minuto a minuto fazem das ruas estacionamentos ou praças de guerra onde a lei do trânsito não vigora, simplesmente não vigora; por exemplo, a realização semanal e criminosa de feiras públicas que obstruem ruas, avenidas, praças e qualquer logradouro que se preste a espaço de negociação e vendas, como verdadeiras lojas a céu aberto.
            Taxei de criminosas as supracitadas realidades fortalezenses porque, segundo consta, tais práticas são proibidas por lei municipal. Corro o risco de passar um atestado de ignorância com esta afirmação porquanto a lei possa ter sido modificada em tempo recente e isso não ter chegado ao meu conhecimento. Contudo, afirmo, com certa petulância, que, se tal ocorreu, estará a nova lei institucionalizando a barbárie e a injustiça fiscal.
            Antigamente havia o rapa. E o que era o rapa? Resposta: o rapa eram os fiscais da prefeitura que chegavam sorrateiramente para confiscar os produtos vendidos nas calçadas e nas ruas das cidades, munidos de completo aparato policial para fazer valer a lei. Estava-se na rua quando, de repente, ouvia-se o brado inconfundível: –“Olha o rapa!” Era, então, o pandemônio, uma correria geral com gente arrastando as bancadas e a muamba pelas ruas secundárias em meio ao povaréu que ia e vinha. Então, pergunto aos meus raríssimos leitores: – onde, em nome de santo Epitácio, foi parar o rapa? Novamente respondo: o rapa não existe mais. E o que significa o sumiço do rapa? Ora, significa exatamente a barbárie e a injustiça para com os comerciantes que andam dentro da lei. E nem estou a falar das feiras onde se vendem produtos roubados!
            Eis, então, que pergunto: – qual candidato falou sobre a intenção de fazer cumprir a lei? Repito, não assisti a nenhum debate, a nenhuma propaganda política no horário reservado na televisão, a nenhum comício. (Houve comício?) Mas, arrisco sem medo de errar – nenhum deles falou sobre o tema. E por que não falou? Porque o político brasileiro é um pilantra que só pensa em sua carreira. E estamos conversados. Ele evita temas “antipopulares” receoso de perder votos. Ora, há aqui um evidente pacto de mediocridade entre o povo que detesta a lei e o político que quer se tornar prefeito. As obras conquistam o povo medíocre enquanto a lei...
            Falou-se que iriam melhorar a saúde do município. Vejam bem – prometeram melhorar a saúde do município! A doença mais prevalente nesta decadente cidade é a violência. Pois o senhor atual prefeito, candidato à reeleição, está a erigir um hospital anexo ao maior centro médico de atendimento ao traumatizado do Nordeste, o Instituto Dr. José Frota (IJF). A violência grassa solta, célere, incontida, irrefreável... Que se ideou fazer? Outro hospital, outra obra. Não sei se percebem. O povo talvez veja nisso uma grande realização, mas... e a violência? Não seria mais barato e mais humano conter a violência? Parece que não. Está aí o pacto medíocre. E sejamos francos – nenhum dos candidatos pode fazer algo para conter essa praga que se alastra entre nós. Digo isso e percebo que estou enganado. Eles podem fazer algo: cobrar com seriedade das instâncias competentes a que tomem medidas urgentes para tal. Não cobram. Não querem se indispor com seus comparsas, digo, aliados. Seu discurso é evasivo quanto ao ponto nevrálgico da questão. Estão lucrando com a violência, eis a verdade.
             Dessa pobre e tendenciosa reflexão lastreada em fatos gritantes do dia-a-dia de uma cidade miserável cujo povo se vendeu faz tempo, concluí o inexorável – não há um que preste. Sim, nenhum tem moral, estão todos vendidos, exatamente como o povo que há de elegê-los. Enquanto isso, as ruas repletas de bandeiras, as carreatas, os “santinhos”, os debates vazios que só se prestam a discussões inúteis e infrutíferas, tudo uma encenação patética, uma pantomima cruel. Educação, escola, emprego, trabalho... sobre tudo se fala, sobre tudo se promete uma medida salvadora, enquanto não têm coragem de fazer cumprir uma única e mísera lei, a título de exemplo. Dá para acreditar em alguma coisa que saia dessa fornalha maldita? Minha intuição me diz que não...      

sábado, 27 de agosto de 2016

A CRUEL E FRIA REALIDADE DOS FATOS

          Os leitores hão de concordar - em tudo que se diz ou se escreve há mais do que as palavras. Sim, o discurso, qualquer discurso, está repleto de mensagens subliminares. Há nele o óbvio e o velado; há nele a mensagem que se quer passar e a mensagem que não se quer divulgar, como se fosse essa um indesejável porém inelutável para-efeito daquela. 
          Pois essa fraqueza da comunicação ficou absurdamente visível na postagem, na rede social, feita por um cidadão a propósito do assassinato de uma mãe ocorrido, acho que em Porto Alegre, defronte ao colégio de seu filho. Imaginem os senhores uma mãe que vai buscar o filho à porta da escola. A cena é corriqueira, ocorre todos os dias à hora do fim das aulas em milhões de escolas brasileiras. A mãe vai de carro ou a pé e se posta à frente do portão esperando vir o filho, um menor, que já, já vem correndo abraçá-la e beijá-la, anelando, ambos, o reencontro. No caminho de volta pra casa ele fala dos coleguinhas, do que ensinou o professor, das peraltices no recreio, enfim, de sua vida em sua segunda casa, a escola onde estuda. 
          Naquele dia, um dia como outro qualquer, está a mãe esperando o garoto quando é abordada por alguns homens que lhe querem tomar os pertences e o que quer que ela carregue de valor. Por alguma razão que não ficou clara, a cena acaba com o cadáver da mãe estendido à via pública e o filho sabe-se lá onde. O crime escandalizou a todos. Não deitemos à pena do porquê de o crime ter causado essa comoção geral e inexorável. Diria apenas que, se tal não ocorresse, havíamos de ter-nos tornado seres insensíveis, seres sem compaixão, seres empedernidos... como as rochas e o vento. Felizmente, contudo, houve lágrimas e horror, estarrecimento, indignação. 
          Eis que, então, diante da indignação geral vem de lá este senhor, um tal de Antonio Donato – um sujeito bem apessoado, usuário de uma barba até bem aparada e de um par de óculos de armação grossa e negra –, e escreve na rede social o seguinte: "Gostaria de propor duas questões à burguesia que enlouqueceu depois que a mulher foi morta na frente do colégio particular... a) e o genocídio de jovens negros na periferia que já vem ocorrendo há décadas? Por que isso nunca incomodou vocês?, b) Será que a vítima é realmente vítima? Se tinha filho numa escola particular, ela é parte da classe que perpetua a exclusão social e, portanto, era culpada pela situação que temos. Aqueles que vocês consideram malfeitores, os assaltantes, estavam, isto sim, fazendo uma desapropriação revolucionária, tomando os bens da burguesia que os explora, e que pertencem por direito aos proletários." 
          Ia propor um minuto de silêncio após a transcrição desse discurso absolutamente cretino, mas lembrei que não estou discursando para qualquer plateia. Lembrei-me de que estou escrevendo um texto e que um minuto de silêncio não se aplica a essa situação. Poderia, é verdade, pedir encarecidamente ao leitor que suspendesse por um minuto a leitura e suspirasse, olhando para o céu ou para o teto de casa, suspirasse. Uma excelente alternativa seria interromper a leitura e sair ali à varanda ou ao jardim – somos um povo sem jardins – e, suspirando profundamente, tentasse controlar a avalanche de indignação e perplexidade que lhe vai no íntimo. 
          Este senhor, cujo coração parou de bater faz tempo, refere-se à morta simplesmente como "a mulher que foi morta". É o primeiro sinal – a tal mensagem que se quer esconder, mas impossível é fazê-lo – de seu desprezo pelo ser humano. Também é nítido o alinhamento da fala deste cidadão ao discurso proferido publicamente e debochadamente pela senhora Marilena Chauí, quando disse que odiava a classe média. 
          O segundo sinal de desprezo é pela vítima, a tentativa torpe e tão criminosa quanto a atitude dos facínoras que a assassinaram, de desqualificá-la, responsabilizando-a pelo crime que a matou, como se ela fizesse parte de suposto complô que "explora" os assaltantes que a mataram e que por isso devesse ser executada. 
          A ideia marxista de que o bandido está justificado por ser um excluído social e ser o seu ato um ato revolucionário só tem paralelo nas gangues da esquerda dos anos '50, '60 e '70 que assaltavam bancos, carros fortes e delegacias para roubar valores e cédulas de identidade em branco; que assassinavam embaixadores, militares e civis em atentados terroristas planejados em "aparelhos", em sua guerra declarada ao ocidente patrocinada pela União Soviética e Cuba em sua pretensão de exportar o comunismo a todos os confins do planeta. O marginal era voluntariamente marginal por ter tido seu cérebro lavado e enxaguado nos campos de treinamento cubanos, aliciando aqui novos guerreiros a fim de promover a "desapropriação revolucionária". Como esperar que alguém que odeia o ser humano sinta algum tipo de piedade e misericórdia ao ver ato de violência tão covarde e vil? 
          O ódio de Marilena Chauí é o ódio que o comunismo ensina a seus seguidores a nutrir pelo ser humano. Dirá alguém que não, que o comunista ama o ser humano desfavorecido, ama o ser humano vítima das injustiças sociais e explorado por uma burguesia egoísta e superficial. Ora, basta vermos a história do que foi o comunismo para os povos que dele foram vítimas para percebermos a falácia que é sua retórica. Assassinatos em massa através de campos de extermínio – os nazistas foram seus alunos –, expropriações de populações inteiras, perseguições com julgamentos e execuções sumárias, perda da liberdade de pensamento, de expressão e religiosa, extermínio de classes sociais inteiras, destruição do patrimônio histórico e tantas outras atrocidades foram cometidas em nome da "revolução" e do "partido". Mesmo aqueles que com eles colaboraram ao início acabaram, muitos deles, sendo executados em "expurgos" periódicos e planejados de modo que, o discurso que ilude serve justamente a apontar suas próximas vítimas: – os excluídos sociais. Homossexuais, prostitutas, mutilados, incapazes, negros, enfim, todos os seres humanos a quem pretendem defender serão, tão logo ascendam ao poder absoluto, sumariamente descartados. Esta não é uma suposição nem uma acusação – é a cartilha comunista cuja história não deixa de revelar. 
          O tal Antonio Donato encerra seu comentário na rede social exortando a que todos votem na esquerda na próxima eleição para a prefeitura porque "somente a esquerda pode diminuir a violência; porque somente a esquerda sanará as injustiças que pessoas como esses jovens marginalizados sofrem". Vejam o terror que se nos apresenta à leitura de tal discurso. Os criminosos são, segundo esse preponderante marxista, as grandes vítimas desse vergonhoso episódio. São eles a quem devemos defender e em quem devemos pensar na hora de votar. A senhora morta, a mãe de um filho que ainda vai à escola e precisa que ela vá buscá-lo à saída, é uma "exploradora", é uma "burguesa" sem importância e descartável na cartilha comunista, é uma expropriadora dos bens de uma classe social desfavorecida e marginalizada. 
          Só a esquerda pode diminuir a violência? Em 13 anos de esquerda no poder a violência só cresceu, a níveis intoleráveis cresceu. Somente a esquerda sanará as injustiças que vitimam os jovens marginalizados? Em 13 anos no poder a esquerda brasileira produziu mais e mais corrupção, desemprego, miséria, pobreza, ignorância e dor às famílias, indistintamente de sua classe social. 
          Senhor Antonio Donato, a esquerda brasileira perdeu a chance de mostrar que tudo o que o comunismo fez de errado no mundo no passado foi um engano, um grande é terrível engano... As mensagens subentendidas falam sempre mais alto que o discurso porquanto são elas que estão de acordo com a cruel e fria realidade dos fatos.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

UM TERREMOTO PARA NÓS?

            Foi o senhor Luiz Brignoni, antigo paciente do ambulatório, quem chegou anunciando o terremoto italiano. Falou em 38 mortos e uma centena de desaparecidos. Ele, uruguaio que é, exclamava:
           –“Algo horrible! Horrible!”
          Somente depois de dois dedos de prosa sobre o triste evento natural ele veio confessar-me os males que o afligem...
           Chegando ao condomínio dou de cara com o Mateus, o italiano mais brasileiro que conheço, emigrado há muito da Lombardia. Ao me ver, chamou meu nome como a me anunciar para um discurso, naquele modo italiano bem pouco discreto e bastante efusivo:
          –“Ferrnánndo”!...
          A julgar pelo sorriso aberto, a tragédia não parecia lhe afetar nem um pouco. Não fosse eu a trazer à baila o assunto, nosso fortuito encontro se resumiria a seu brado retumbante e ao abraço que trocamos:
          –“Soubeste do tremor em Itália”?, indaguei.
          Ele serenou o semblante demonstrando um leve pesar e disse:
          –“Sim... em Peruggia, na Umbria”...
          ...e saiu a anunciar o número de mortos e desaparecidos até então. Dali entramos no elevador. (Moramos no mesmo andar.)
          Pouco antes de a porta se abrir ele bradou, com aquele vozeirão italianado:
          –“Bem podia ter sido em Nápoles! aquela vergonha, aquele lugar vergonhoso...”!
           Não pude deixar de gargalhar diante daquela revolta nativa por certa região de sua terra, como aqui também fazemos a propósito de um ou outro lugar do país. Saí a lembrar-me de “Gomorra”, do italiano Roberto Saviano – “a história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana”. Concluí que ele há de ter lá suas razões. 
             E nós? Estaríamos necessitados de um desses? 

EXEMPLO DE MAU EXEMPLO

         As manchetes dão conta de que o Neymar xingou um torcedor ao final e durante as comemorações, ainda em campo, pela vitória da seleção olímpica de futebol frente à seleção da Alemanha. E não somente as manchetes, mas um vídeo gravado n’algum telefone portátil de outro torcedor próximo ao lugar onde ocorreu o entrevero também circula por aí para quem quiser ver a cena.
         Assisti ao curto vídeo por várias vezes, mas confesso – não consegui ouvir da boca do jogador o xingamento inusitado. O áudio da filmagem não conseguiu captar o que o jogador dizia. Como não sou dado à leitura labial, não “vi” nenhum dos hipotéticos palavrões ditos por ele. Contudo, a imagem é clara – o homem estava endiabrado. Foi e voltou duas ou três vezes à beira das cadeiras onde estavam os torcedores e, bufando como um animal enfurecido, se esgoelava e gesticulava para eles.
         (Já crescia em mim a impressão de que o Neymar se parecia com o Cristiano Ronaldo. Sim, para mim o Neymar seria o nosso Cristiano Ronaldo sem as afetações narcisistas e acrescido da deselegância e falta de polidez e decoro.)
         A certa altura ele soca a bancada de defronte as cadeiras derribando algum objeto que lá estava. Ouve-se apenas a comemoração dos torcedores clamando carinhosamente seu nome, felizes com a vitória do escrete brasileiro. Seu surto destoava gritantemente do que bradava a torcida e mesmo do momento de comemoração. Dir-se-ia uma atitude inteiramente inoportuna, uma aberração, um disparate.
          Quem pensa que foi só isso, engana-se. A coisa foi pior, bem pior. O jogador tinha amarrada à cabeça uma fita branca onde estava escrito “100% Jesus”. A ação de desequilíbrio foi um fragoroso atentado contra a natureza do Cristo, cuja mansidão permanente revelava Seu caráter amoroso e compassivo. Neymar publicamente pisava a mansidão da Divindade e nem por uma fração de segundo se deu conta do ato tresloucado. (Ao que consta, Jesus enfureceu-se em vida apenas uma mísera e solitária vez, contra os vendilhões que ocupavam o templo e o transformavam em praça de comércio.) A natureza da índole do jogador foi, assim, exposta para o mundo todo ver e rever quantas vezes quiser.
          Agora, vejam os leitores como o futebol é um esporte esquisito. Quem de mim duvidar, duvidará por sua conta e risco. As olimpíadas estiveram aí por três ou quatro semanas. Inúmeras modalidades esportivas estavam competindo e assistiram-se incontáveis disputas. Ao mais desavisado e casto espectador e torcedor deve ter transparecido a extravagância que é o futebol. Sim, o futebol, que assim não era, de repente tornou-se o esporte onde, hoje em dia, tudo acontece. No futebol tudo é diferente dos outros esportes. Minto. Não é no futebol – é no futebol brasileiro.
           O futebol brasileiro, que um dia pretendeu ser o melhor do mundo para sempre e contrariando o princípio da efemeridade de Buckminster Fuller, está literalmente acabado. Nada é o melhor para sempre e, é bem possível, nada permanece ruim indefinidamente. Assim, os ex-bons estão péssimos. Basta assistir a quinze minutos de um jogo da nossa seleção para se perceber que o melhor já passou; que as repetidas safras de craques que permeavam constantemente nossos campos minguou; e que, é verdade, aqui e ali surge um ou outro bom jogador, mas a nossa massa crítica de estrelas está longe de ser atingida já faz um bom tempo. Neymar é um desses raros que se destaca com a bola no pé, mas nada que encante e que nos lave a alma. Diante de tantas nulidades, seu futebol ganha certa importância ao ponto de torná-lo necessário. Eis aí tudo.
          O que chamo de esquisito em nosso futebol é justamente quando se junta a mediocridade com a boçalidade num único atleta. Sim, porque não existe o troglodita em casa que se torne um lord na rua. Ou o sujeito é ou não é. E não me venham com a desculpa de que os ânimos estavam exaltados, ou a de que a juventude invariavelmente carrega consigo esses arroubos de homem das cavernas. O Brasil viu no passado inúmeros jovens jogadores que se portavam como verdadeiros cavalheiros em campo, na vitória e na derrota. Quem já assistiu a um Falcão jogar, sabe do que estou falando; quem já viu a atitude e o futebol de um Ademir da Guia há de entender onde quero chegar; e nem falo de Pelé que esse é conhecido até em Plutão. Mané Garrincha, que nasceu humilde, viveu humilde e morreu mais humilde ainda, subia a serra para jogar com os peladeiros de Pau Grande, sua cidade natal ainda que já fosse a sensação do momento.
           Enfim, a sensação de vergonha se sobrepõe à vitória de domingo não pelo resultado nem pela forma como se chegou até ela, mas pelos nítidos sinais de que retrocedemos muito. E não falo apenas no futebol e do futebol. Refiro-me a toda essa falta de finesse e délicatesse promovida por atleta anfitrião considerado líder de sua equipe cujo exemplo foi o pior possível.


terça-feira, 23 de agosto de 2016

PERDIDOS NA FINITUDE DA VIDA

No último fim de semana encontrei ali, na Escola Cearense de Emergências Médicas, o meu querido amigo Adailton Braga. Funcionávamos, ele e eu, como instrutores em mais um curso do Avanced Trauma Life Support (ATLS). Conversávamos à hora do intervalo quando o Adailton me sai com a frase lapidar e oportuna:
              –“É muita informação e pouco conhecimento”...
             (Os leitores saibam que adoro uma boa frase.)
            De fato, se sairmos a refletir, é muita informação e pouco, muito pouco, pouquíssimo conhecimento. Dou exemplo: – o próprio ATLS. Percebo que devo uma explicação aos meus poucos leitores, e que devo provê-la antes de seguir em frente: afinal, o que é esse tal de ATLS? É muito simples.
            Comecei cedo, ainda discípulo de Esculápio, a frequentar o ambiente da Emergência de hospitais públicos. Foi quando me chega o meu amigo Britto querendo saber o que fazemos primeiro ao receber e atender um doente que chega procurando socorro. Devo confessar – eu não sabia a resposta. Anos depois aprendi.
           Eis que o ATLS é um curso que ensina justamente aos médicos o que devem fazer primeiro, as prioridades, quando recebem, na Emergência, uma pessoa vítima de traumatismo. As prioridades são, em ordem de sequência, as correções dos distúrbios fisiológicos que matam mais rapidamente o indivíduo. Por exemplo, de todos os distúrbios fisiológicos, o que leva mais rapidamente à morte é a anóxia, a falta de oxigênio, por obstrução da via aérea. Consequentemente, os médicos alunos do ATLS aprendem a reconhecer esse distúrbio e a tratá-lo como prioridade número 1. A sequência de prioridades no atendimento do ATLS é hoje também utilizada noutros cenários da Emergência Médica que não o trauma. Seu valor é inquestionável, de modo que não há controvérsias quanto a isso.
           Voltemos à frase do Adailton. Concordávamos que os espessos tratados da literatura médica se assemelham a roupas encharcadas. Molhadas, pesam 3 ou 4 vezes seu peso normal. Assim também são nossos tratados – se lhes espremermos, deles sairá muita informação e pouco conhecimento. Isso significa que há muitíssimo mais pesquisa e estudos em andamento do que conhecimento sedimentado, pétreo, inquestionável, a verdade absoluta sobre a saúde e a doença. Os tratados seriam bem menos volumosos se trouxessem apenas e tão-somente o que de fato se sabe e o que de fato se deve fazer em tal ou qual situação. Sua espessura e seu peso deve-se à inclusão, em suas páginas, daquilo que é controverso, daquilo sobre o que não se chegou a um consenso.
            Pois eis o porquê de minha enorme simpatia pelo nosso ATLS. (Digo nosso, mas devo confessar que o curso pertence ao Comitê de Trauma do Colégio Americano de Cirurgiões.) É pouco provável que se mudem suas prioridades nos próximos anos.
Dirá alguém que é assim mesmo, que o conhecimento não tem limites, que a ciência tem ainda muito o que descobrir, que estamos apenas começando, e por aí vai. Ora, toda essa retórica é um tédio só porquanto vem à boca de cena apenas para anunciar o óbvio. Vejam que não saiam por aí a dizer que estou condenando o óbvio. Pelo contrário, sou um ardoroso e irascível defensor do óbvio, tanto que já lhe dediquei temerosos comentários por sua morte iminente (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2013/01/a-morte-do-obvio.html e http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2013/08/a-morte-definitiva-do-obvio.html). Aqui falo do óbvio vazio e que nada acrescenta, diferente daquele que se quer assassinar. Aqui, o óbvio se assemelha ao conteúdo descartável dos espessos tratados médicos.
              A grande e irrefutável verdade é uma, e somente uma: – de nada sabemos. Sim, somos uns ignorantes de marca maior. Pouco mais de um século de avanços científicos não seria capaz de desvendar aquilo que os homens não poderiam descobrir mesmo que vivessem mil anos. A nós só resta enchermos as páginas de nossos livros com linguiça e vento, o que temos feito com maestria nos últimos cem anos.
             Vejam que não estou a afirmar que em nada avançamos. Não há dúvidas de que o fizemos. Mas diante da escuridão de nosso desconhecimento, nossa luz científica mais se assemelha a uma vela cuja chama bruxuleante não nos permite enxergar um palmo à frente do nariz – eis a acachapante verdade. (Acabo de fazer uso de uma metáfora que serviu a um dos livros de Carl Sagan, “O Mundo Assombrado Pelos Demônios: a ciência vista como uma vela no escuro”, um ateu desavergonhado que, apesar da assunção de sua ignorância, presumiu que seria a ciência a única esperança da espécie humana.)
Concluo reforçando tanto quanto possível a frase do Adailton – temos uma infindável e ainda crescente quantidade de informação, e quase nenhum conhecimento. Nossas academias estão repletas de empáfia e de prêmios inúteis, enquanto seguimos tolos e perdidos na finitude da vida.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

MESQUITA E O RONCO NO CRUZEIRO

Contou-me hoje o amado amigo Gaudêncio o seguinte – na viagem recente que fizeram à Europa, o que o Mesquita mais fez foi dormir. Ora, não sei se contei aqui que foram à Europa recentemente o Gaudêncio, o Mesquita, o Joserme, as esposas e os filhos. Foram à Dinamarca e de lá saíram em cruzeiro pelo Mar Báltico. Foram bater em São Petersburgo.
O detalhe importante e que deve ser realçado é que há uma diferença de horário impactante: lá são 5 ou 6 horas a mais. Assim, à medida que o navio se deslocava para o leste, mais dormia o Mesquita. Dormia tanto que já nem comia, nem bebia, nem ia ao banheiro. Conclui-se que a diferença no fuso horário estragou a viagem do amigo. As poucas vezes em que esteve acordado foi quando estavam em terra firme. Aproveitava e fotografava monumentos históricos e enviava as fotos para nós que aqui ficamos. A viagem terminou em Amsterdam e foi justamente lá que o homem esteve maiores períodos em alerta.
Vejam que, nas fotos, não seria possível dizer que o nosso Mesquita estava a enfrentar esse jet lag incômodo. O sorriso do homem ia de orelha a orelha e até se permitiu filmar andando de bicicleta. É bem verdade que isso foi ao início do périplo, de modo que, ao que parece, a coisa evoluiu à medida que passava a excitação do voo. Após quase 15 dias de viagem, o homem se deixou fotografar numa loja amsterdamesa onde se vendem derivados da Cannabis sativa. E mais – segurava alguns de seus produtos e escrevia para nós, na rede social: “vou levar umas mudinhas para plantar”. Pelo sim, pelo não, alguém mais lúcido lembrou-se de lhe avisar que seria preso no aeroporto se assim o fizesse. Usava então um par de óculos escuros, desses que fazem seu usuário se passar por um gangster crudelíssimo, daqueles que trucidam criancinhas indefesas. Ou isso ou o Mesquita estaria já sob o efeito do tetrahidrocanabinol, que Deus o livre. Enfim, lá, em Amsterdam, última parada antes do retorno, o amigo parecia todo animado. Mas já era tarde demais para tanto ânimo e em seguida se viu novamente no avião de volta para casa.
Fiquei a matutar nas razões pelas quais o jet lag atingiu o Mesquita, e somente o Mesquita, ninguém mais além do Mesquita. Sabem aqueles que o conhecem que o homem dorme antes das galinhas. Sim, o Mesquita, salvo exceções incomuns, chega à casa por volta de seis ou sete da noite, come 2 quilos de janta, deita-se não sem antes desligar o telefone portátil, e dali a um minuto está a dormir mais do que gato de hotel de beira de estrada. Há, nessa queda vertiginosa ao sono dos justos, um outro detalhe digno de nota e bastante oportuno de ser lembrado – o Mesquita ronca o ronco dos asfixiados. Outro dia relatei aqui a frustração de meu amigo Meninotti Motta causada pelo estrondoso ronco de outro amigo, o Madame Serjão. (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2016/07/o-ronco-que-assassinou-libido_13.html) Pois bem. O ronco de Madame Serjão é para mim ainda uma incógnita, ao passo que o do Mesquita já escurei pessoalmente. Dele posso falar.
Disse o Meninotti, em dramático relato, que o ronco de Madame é semelhante ao pródromo de um tsunami. As aves que dormiam às árvores da pousada imediatamente alçaram voo tal como se a onda gigante estivesse próxima, e os ventos balouçaram a copa das plantas do jardim chegando quase a arrancar-lhes do solo pela raiz.
Posso então garantir – o ronco do Mesquita é pior, bem pior. O do Mesquita é o som do tsunami misturado e adicionado ao do terremoto que a gerou a 2 mil quilômetros de distância e a 6 mil metros de profundidade. Por aí se vê quão profundamente dorme o Mesquita – o sujeito que ronca um ronco desses há de dormir nas profundezas da inconsciência, a um passo da inconsciência da morte. Caso contrário, seria despertado pelos próprios ensurdecedores estertores. Suponho, portanto, que era assim que dormia o Mesquita em sua cabine no navio que singrava as águas bálticas do mar gelado.
E, a propósito, o frio havia de ser um detalhe a mais para essa preguiça que desafiava a claridade pálida e fosca da luz dos confins nórdicos do planeta. Se aqui o homem dorme às 8 da noite, é como se lá viesse o sono à uma ou duas da tarde. Dentro de sua espartana disciplina, ele acorda às 5 da manhã para ir surfar, um hábito de décadas, desde a adolescência. Ou seja, lá seriam 11 da manhã quando o sono do homem acabava.
Não se sabe até agora se o Mesquita é de enjoar a bordo de barcos, mas, ao que tudo indica, o enorme transatlântico mais lhe parecia uma rede feita no Ceará, o que só contribuía para lhe aprofundar ainda mais o sono e, consequentemente, lhe levar a produzir os sons mais inimagináveis em seus grunhidos cacofônicos. A conclusão a que cheguei foi a de que o Mesquita não tem mais idade para viagens a lugares muito a leste, sob pena de trocar o dia pela noite. Estou a ponto de conversar com o amigo Gaudêncio, nosso competentíssimo agente de viagens, a fim de tentar convencê-lo a que não permita ao Mesquita viajar para distâncias além do meridiano 20° leste. A fisiologia do sono de nosso amigo anda cada vez mais frágil e mais refratária a adaptar-se ao tempo, ao fuso. Suas viagens nessas circunstâncias estarão fadadas à troca do dia pela noite e, quiçá, à percepção, por parte de seu organismo, de que a vida é uma noite eterna, levando-o a dormir e perder os maiores encantos e atrações.
Ainda aguardo de meu amigo Gaudêncio o relato detalhado da hipersonia do Mesquita. É possível até que o homem tenha ficado famoso entre os passageiros do cruzeiro. Afinal, uma roncaria como a dele é audível num raio de cem metros. Não sei como dona Rejane aguenta!

quarta-feira, 13 de julho de 2016

O RONCO QUE ASSASSINOU A LIBIDO

Os leitores que me acompanham há mais tempo sabem que os Mesquita são dados às festas de arromba. Antes de continuar definamos “festa de arromba” – festa de arromba é aquela em que não falta comida nem bebida; tem hora para começar, mas não tem hora para acabar; e nela tem-se a nítida impressão que a cidade inteira foi convidada. Pois os Mesquita, fiquem sabendo meus mais recentes leitores, fazem festas de arromba com uma frequência acima da média. (Os Mesquita são dados também a viajar em família, de modo que guardam em casa a gaiola para o papagaio, uma casinha para o gato e outra para o cachorro. Nenhum dos bichos fica em casa.)
A última dessas festas foi agora, recentemente, no mês de maio passado: o casamento de arromba – “casamento de arromba” é um tipo específico e mais rebuscado de “festa de arromba” – da filha caçula de meu amado amigo Helber Mendes Mesquita. A cerimônia religiosa aconteceu na igrejinha de São Pedro, localizada na praça São Pedro da pequena e simpática Flecheiras, uma paradisíaca praia a 140 quilômetros de Fortaleza. A igreja pode ser simples, mas os Mesquita, nesse dia, a fizeram nababesca. Não que a tenham enfeitado e decorado com ouro e pedras preciosas, mas porque a encheram da gente distinta que são seus amigos e conhecidos mais chegados.
O baile nupcial foi na Pousada Vila Vagalume, localizada na vizinha e não menos paradisíaca praia do Guajirú. Ora, a pousada à beira-mar, quase onde quebram as ondas, foi fechada inteiramente para o evento. Digamos logo de uma vez – o Mesquita alugou a pousada inteira para o fim de semana e a decorou elegantemente para o rega-bofe. Estimam seus mais afoitos e descarados amigos que o homem tenha gasto uma pequena fortuna para casar a filha.
Falei tudo isso, mas devo dizer que não era nada disso o que eu queria dizer, não era sobre isso que queria falar. Queria dizer que os amigos que foram a mais essa festa de arromba promovida e patrocinada pelo Mesquita tiveram que encontrar hospedaria nas várias propriedades que existem entre as duas lindas praias. Até aí nada de mais, nada digno de nota. E minto. Houve, sim, uma coincidência digna de ressalva a ser comentada.  Vejam os amigos que, por vezes, a vida conspira para nos revelar os segredos mais íntimos e mais recônditos utilizando-se das situações mais inesperadas. Aconteceu o seguinte.
Hospedaram-se, por coincidência, na mesma pousada os queridos Fábio “Meninotti” Motta (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2015/10/os-gatos-de-laurinha.html) e “Madame” Serjão (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2016/04/madame-serjao.html), ambos acompanhados de suas digníssimas. Não bastasse essa única e feliz coincidência, coincidiu também de os amigos terem escolhido, na pousada, quartos sobrepostos. (Parece que “Madame” Serjão e a esposa ficaram no quarto superior.)
O diabo é que o nosso “Meninotti” tem sido muito cobrado, muito – como direi? – requisitado pelos amigos a que engate um namoro sério com alguma beldade que o faça virar gente. (“Virar gente” era expressão usada por minha avó quando reprovava comportamentos erráticos e repreensíveis.) É verdade que ele se fazia acompanhar desta menina, uma jovem, uma recente ex-adolescente com a qual estava hospedado nas Flecheiras, mas os amigos demandavam uma coisa mais séria, um namoro com futuro para o amigo. Entretanto, temos que reconhecer que é possível que o amigo cinquentão tenha lá sua libido ainda exaltada e firme, esperando uma satisfação e uma resolução como aos tempos do colégio marista, e tenha resolvido continuar a viver essa andrarca persistente e interminável. Enfim, o que se pode fazer quando as coisas existem e não deveriam existir? (Dizia o Casoba que as coisas são como são e não como deveriam ser.)
O fato é que lá estava o nosso “Meninotti” Motta à noite, na pousada, ao lado de sua jovem companhia. Namoravam enrolados nos lençóis e estavam para ir às vias de fato quando começa aquele barulho incômodo e exasperante. Seria alguém a roncar, sim, alguém em profundo sono, entoando um desses roncos que estremecem o ar e tudo o mais em volta, deixando nos que estão alerta a impressão de sufocação e morte iminente do que ronca. Havia também, diria depois o Motta, um silvo, sim, um assobio prolongado e agudíssimo. Seria parte daquela sinfonia absurda, desafinada e ensurdecedora.
De um salto Motta levantou-se e saiu até a varanda, tentando descobrir de onde viria o som. Com efeito, ali, na varanda, o barulho aumentara, era bem audível, quase como se viesse de dentro de seu próprio quarto. Não demorou e concluiu – o ronco vinha do apartamento de cima, do quarto de “Madame” Serjão. Concluiu também sem demora que mulheres não roncam o ronco dos tórax robustos e ressonantes. A conclusão parecia óbvia – Serjão seria o autor único daquele atropelamento de sons guturais.
Quem chegar hoje às Flecheiras e perguntar sobre o episódio, saberá que um tal “Madame” Serjão, certa noite, roncou tanto pela madrugada adentro e sem dar sossego aos hóspedes de certa pousada, e que um tal de “Meninotti” Motta, seu dileto amigo, por isso desistiu de perpetrar o ato a que se propunha então devido ao que chamou de “interferência libidinal irreversível”, uma entidade nosológica a ser ainda descrita, mas que ele jura ter experimentado em sua plenitude como vítima.
Diz ele até hoje que prefere morrer a passar por isso outra vez, tendo recebido de imediato a solidariedade de todos os amigos que lhe ouviram o relato da tragédia.                

segunda-feira, 11 de julho de 2016

UM CABRA EXPERIENTE NO ASSUNTO

Há hoje o consenso de que o mundo, ou melhor, a vida não seria possível sem a rapidez com que se alastra a informação. A rede mundial de computadores e as diversas mídias disponíveis para acessá-la seriam, doravante, condição sine qua non para a existência de qualquer ser humano. Sim, pelo menos o ser humano que pretenda ter uma vida normal. A vida fora desse novo ambiente seria uma vida à margem ou, sendo bem direto, uma vida marginal.
Com efeito, hoje em dia a vida de quem quer que seja não pertence a seu dono e o sujeito que ouse ter a sua vida somente para si será, para todos os efeitos, um marginal, um ser execrável, portador de qualquer dessas modernas patologias mentais recentemente descritas em espessos tratados psiquiátricos. O indivíduo, aos dias de hoje, é obrigado a ter um comportamento real condizente e coerente ao seu comportamento virtual, sob pena de a mulher lhe pedir o divórcio, ou os amigos passarem a desconfiar de sua credibilidade, ou o gerente de seu banco lhe taxar com maiores juros que o restante dos clientes. E não somente isso. Também o comportamento virtual há de agradar ou desagradar a todos indistintamente, sob pena de o acusarem de discriminação. O governo, se pudesse, tomar-lhe-ia tudo o que tem e mais um pouco, já que está a criar cada vez mais mecanismos que lhe permitam tomar conhecimento de tudo o que o cidadão faz com seu pobre e suado dinheirinho.
Como efeito colateral “menor” da ampla divulgação ou disponibilidade de acesso às informações sobre todos, empresas e bancos se sentem à vontade para divulgar seus produtos através de mensagens por correio eletrônico ou mesmo por contato telefônico direto. A informação dá dez voltas ao mundo antes que termine um piscar de olhos e, se passar pelo individuo sem que ele a capte, sentir-se-á excluído do mundo, com a nítida sensação de ter perdido algo de importância capital. E assim é, hoje, a vida de um ser humano minimamente normal. A nova ética se impõe; a velha fenece como a flor com que se presenteia alguém que se ama.
O hoje é imperativo em seus novos hábitos, em seus novos compromissos, em suas novas obrigações. Não importa o que se sente, mas é imperioso que se o demonstre publicamente mesmo que não haja sentimento algum... Antigamente, para se dizer vivo bastava ir atrás do trio elétrico. Hoje, para estar vivo é preciso correr atrás da cauda do foguete da informação, seja ela boa ou péssima, construtiva ou inútil, eficaz ou insensata. Tanto que não importa o que esteja fazendo, atenda o telefone imediatamente e responda incontinenti às mensagens que chegam pelo telefone portátil.
Foi assim que, há cerca de uma semana, me bate o telefone à hora em que atendia os doentes no ambulatório. Era um número desconhecido. (Atreva-se a não atender a um conhecido e aguente as consequências.) O sujeito queria me oferecer algo, mas não decifrei exatamente o que seria devido à má qualidade da chamada. Despedi-me explicando que naquele momento não poderia falar, e desliguei.
Hoje estou ali no almoço, pensando na vida, degustando o alimento. O momento do alimento é momento ímpar, como sabem. O sujeito que come há de desejar toda a paz existente no mundo para si e para si somente. Eis que, súbito, me toca o telefone portátil. Venho atender movido por essas prementes forças da modernidade. Olho o display do aparelho e não reconheço o número que me chama. Atendo. Era o sujeito da semana passada. Identificou-se impecavelmente. Mas, o que queria ele?
Ora, queria me participar que havia, reservado para mim em sua factory, cinquenta mil reais de crédito pré-aprovado. Um empréstimo, dinheiro vivo e fácil, tudo porque sou servidor público municipal. Ou seja, a prefeitura municipal de Fortaleza autoriza a que a tal factory me empreste dinheiro e a ela garante o pagamento das parcelas abatendo-as na fonte, a cada mês de vencimento do salário. Ora, o país está a assistir à prisão de políticos de Brasília por causa de negócios escusos dessa natureza. O governo federal roubou ou foi omisso ao permitir o assalto a servidores públicos aposentados aos quais se ofereceram esses tais empréstimos. A prefeitura de Fortaleza está a seguir os passos de Brasília? A mim não importa – fui direto ao negar a oferta. O homem queria deixar-me seu telefone caso eu mudasse de ideia. Neguei-me enfaticamente a anotar seu número. Pensei tê-lo ouvido rir-se baixinho como se espantado estivesse por eu me negar a tomar o dinheiro. Terminei a conversa seco e direto:
–“... e não volte a me ligar.”
Prometi a mim mesmo mais tarde bater o telefone ao meu amigo Pedro Olímpio para saber dele como se faz para viver sem rede social e sem telefone portátil. Eu sei exatamente como é. Preciso apenas da confirmação de um cabra experiente no assunto.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

FUJÃO

Seu Silvestre, de 75 anos, chegou ao ambulatório segurando um guarda-chuva. (Hoje, em pleno mês de julho, choveu por aqui.) Queixava-se de dores nas pernas quando andava. Por ter sido fumante por longo período, até 25 anos atrás, o médico do bairro supôs para ele uma doença arterial obstrutiva. Por isso o encaminhou a mim. (Não conheço o médico do bairro nem ele a mim.)
Palpei-lhe os pulsos. Eram bons pulsos. “Será mesmo que este homem está com obstrução nas artérias das pernas?”, pensei. Para dirimir a dúvida era aconselhável examinar-lhe os pulsos após ele dar uma boa caminhada, de preferência até que viesse a dor.
–“Seu Silvestre, façamos o seguinte. O senhor ponha a sua sombrinha ali no canto da parede, saia ali fora no corredor, por favor, e ande bastante, até começar a sentir dor. Quando ela vier, volte aqui rápido para que eu lhe examine novamente. Pode entrar sem bater, que eu vou continuar atendendo outras pessoas...” Ele saiu e chamei outro paciente.
Depois atendi outro; depois mais outro; e ainda mais outro... e nada do Seu Silvestre. Saí ao corredor a procurá-lo, e nada do Seu Silvestre. Havia muita gente no corredor, mas não seria difícil identificá-lo, ainda que fosse a primeira vez que nos víssemos. Olhei para um lado e para o outro várias vezes e não avistava o homem. Entrei de volta aos consultórios e comentei com as meninas, as atendentes:
–“O homem sumiu... foi-se embora...”
Por um momento supus não ter sido bastante claro em minhas instruções, e que talvez ele houvesse resolvido mesmo ir embora de uma vez. “Esse doutor é doido varrido!”, estaria pensando. “Mandou-me embora assim, sem mais nem menos...”, teria concluído.
Ainda atendi outro paciente antes de voltar outra vez ao corredor à procura de Seu Silvestre. Tornei a entrar, desta vez na sala defronte a minha onde atendia Dr. Ivan, o proctologista. (Os proctologistas até hoje me perseguem, mas tenho por eles um carinho todo especial.) Contei-lhe o ocorrido, já nos divertindo com o mal-entendido. As atendentes gargalhavam, outros pacientes que aguardavam entrar noutras salas se riam. As portas estavam entreabertas e já todos ouviam a história. Quando saí da sala do amigo, lá estava ele, Seu Silvestre, rindo-se porque ouvia tudo da pilhéria, parado defronte à porta de minha sala. Caçoei dele em tom de brincadeira:
–“Onde o senhor se meteu, homem? Estávamos preocupados...”
Foi quando ele saiu a explicar que saíra do hospital e dera não sei quantas voltas no quarteirão, e que só agora começara a sentir uma muito leve dorzinha nas pernas.
Coloquei-o na mesa de exame. Os pulsos estavam lá, amplos e saudáveis como os de um garoto travesso. Concluí, então, que o jovial idoso não tinha doença arterial nenhuma e saímos a investigar uma outra causa. 
Quando saiu, fiquei com a nítida impressão de que ele foi para casa feliz da vida mais por conta do gracejo do que pelo fato de ter artérias ainda saudáveis. O corpo humano é uma fonte inesgotável de sintomas. 

segunda-feira, 4 de julho de 2016

É COMO SE JAMAIS HOUVESSE EXISTIDO

              O meu amigo Pinto escreveu-me para pedir explicações sobre a crônica publicada ontem neste blog. Queria saber, afinal, se eu achava se seria melhor sobreviver ou se o melhor mesmo seria ter razão. Respondi-lhe que o preferível é o sujeito vivo e saudável sem nenhuma razão ao indivíduo mortinho da silva e cheio de razão. Assim, concordamos que esse negócio de se insistir em ter razão é coisa de gente que não tem amor à vida, nem à sua nem à alheia. E assim nos despedimos.
                Após passado um dia inteiro, ocorreu-me que a estória relacionada ao motociclista pode ser extrapolada para qualquer outro aspecto da vida. Por exemplo, o meu amigo Amorim.
                Não sei se sabem, mas Amorim amancebou-se. Sim, após o divórcio da esposa, sem nem deixar o defunto esfriar saiu a enamorar-se desta senhorita de poucas prendas e pouca idade. O resultado, como bem se pode depreender pelas infindáveis crônicas que a vida proveu neste tema, foi a falência completa do amigo. E nem falo somente da falência material, mas aponto também a miséria afetiva, moral, e até espiritual. Dirá alguém inteirado do episódio que o homem fazia lá suas preces e rogava favores divinos, mas mesmo os santos o abandonaram, quero crer. Não sei se por conta de uma súbita fé a denotar o caráter puramente interesseiro do pedinte, ou se por causa de suas ladainhas intermináveis, o fato é que o santo, ao que parece, dormia àquela zangurriana, uma cantilena modorrenta e chorosa... Dormindo o santo, nenhum milagre ocorreu, e o meu amigo vem, de fato, ao longo dos últimos anos, comendo o pão que o demo amassou.
                Os caros e rarefeitos leitores já se exasperam para saber a relação que há entre a escolha referida acima, trazida novamente à baila hoje pelo meu querido Pinto, e o drama do Amorim. Tentarei explicar já adiantando que nada há de complicado, como bem poderão apreciar.
                Ocorre que o amigo e a jovem à qual se associou viviam em querelas e questiúnculas sem fim. Digo questiúnculas e já me corrijo, visto que nada há de mais sério contra uma relação amorosa do que a perda da confiança. A jovem fez lá as suas estripulias bem como o meu amigo, de modo que na história não havia auréola a pairar sobre a cabeça de ninguém – eram os dois uns safardanas de marca maior. Assim, tornou-se comum o bate-boca infindável e improdutivo a cavar ainda mais fundo a cova do relacionamento. Os entreveros serviam a medir forças para ver quem tinha razão. Resultado – o apartamento, a separação, o novo divórcio do amigo, e a conclusão de que ninguém tinha razão.
                Dirá alguém, apelando à mutualidade exclusivista de nossa tese que, se ninguém tinha razão, então alguém sobreviveu o que, com efeito, é verdade. Ambos sobreviveram. Continuassem a disputa e teríamos, quem sabe, um daqueles crimes passionais onde um trucida o outro enquanto dorme. É bem verdade que houve uma morte – a do relacionamento. Diríamos, à essa argumentação, que antes se vá o substantivo abstrato que o substantivo concreto, e que antes se cavem sepulturas na alma que na terra. O que morre dentro de nós é como se jamais houvesse existido.

domingo, 3 de julho de 2016

SOBREVIVER OU TER RAZÃO?

         O que mais importa ao motociclista – sobreviver ileso ou ter razão?
         Vejam meus cada vez mais raros leitores que a resposta a esta intrigante questão é aparentemente fácil. Numa base racional, isto é, sentado tranquilamente no sofá defronte a um hipotético entrevistador, o motociclista responderia, sem titubear:
–Sobreviver ileso, claro!
Poderíamos agora imaginar o mesmo motociclista saindo desta hipotética entrevista após ter-se servido de um copo de café Pilão, e subindo em sua motocicleta de 125 ou 150 cilindradas. Minutos depois, várias esquinas à frente, estará o nosso pobre motociclista deitado no asfalto por conta de uma colisão com um automóvel. Para sua sorte, seus ferimentos são do tipo que minha mãe faria curativos apenas jogando sobre eles Merthiolate e iodo, e cobrindo depois com gaze e esparadrapo. Afora o ardor, nada demais. No hospital, o médico prescreveu-lhe analgésicos e semicúpios. (Não me perguntem o porquê dos semicúpios.)
Feita a investigação, chega-se à conclusão que o acidente resultou do fato de o motociclista ter-se interposto, na pista de rolagem, entre dois automóveis numa ultrapassagem perigosa e não recomendável. Em outras palavras, o motociclista ficou em posição extremamente vulnerável no momento do tráfego. Ainda assim, praguejava:
–O motorista não olhou para o lado antes de desviar do buraco no asfalto! Por causa dele estou aqui “de atestado”!
Ora! Como se bem pode ver, sobreviver ileso ou ter razão não é uma escolha fácil. Como explicar, agora, a notável contradição entre o que o motociclista disse à entrevista e seu comportamento nas ruas? Consultemos o Dan Ariely, que afirma que o ser humano é um animal irracional, ao contrário do que diz o senso comum. A propósito, Ariely diz que somos não somente irracionais, mas “previsivelmente irracionais”. É possível que no calor do trânsito o sujeito se torne ainda mais humano e esqueça todas as suas eternas boas intenções. A epinefrina e os corticosteróides são hormônios que nada têm a ver com o racional.
Não vou tentar explicar nada disso porque não sou estudioso do comportamento humano e muito menos do comportamento de motociclistas imprudentes. Nem vou entrar no mérito do porquê dizemos uma coisa e fazemos outra na prática. Se o Ariely disse que somos previsivelmente irracionais após vários anos estudando nosso comportamento em várias experiências de campo, quem sou eu para dizer o contrário. Assumamos estar certo o psicólogo, e estamos conversados.
O motociclista, após o acidente, queria ter razão. Vê-se que, no caso, razão significa ser inculpável, ou não ter culpa pelo acidente, ou ainda ser inocente como causador do acidente. No pai dos burros consta que razão é “aquilo que explica alguma coisa ou que faz com que algo exista ou aconteça”. O motociclista queria dizer, então, que não foi ele o causador do acidente.
É claro aqui que o motociclista desprezou o primitivo medo da morte, algo tão irracional quanto seu desejo de ter razão à força. De fato, o medo da morte não é, a princípio, um sentimento racional. Entretanto, é possível ao ser humano inteligente escolher racionalmente como se comportar em situações de perigo ou esquivar-se dela tão logo ela se apresente.
É fato que o sujeito que anda sobre duas rodas tem, desde o início, a perfeita noção de sua maior vulnerabilidade em caso de acidente. Por isso mesmo, presume-se, racionalmente deveria se comportar imbuído de um sentimento irracional, o medo. Concluímos, de forma bem racional, que ao invés de querer ter razão, o motociclista deveria anelar sair ileso após todo e qualquer trajeto que fizer na via pública. Para isso deveria automatizar para si um comportamento frio, calculista e defensivo ao extremo durante a pilotagem. No mais é não esquecer a velha e boa máxima que diz que “o que você faz fala tão alto que o que você diz ninguém escuta”!   

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...