quarta-feira, 25 de junho de 2014

OS POBRES E O IMPOSTO

  Meu caríssimo amigo, gostaria de fazer algumas colocações quanto a este artigo que me enviaste. Mostra tua simpatia pela causa dos pobres, que pagam imposto em demasia. Li o artigo na íntegra no site da revista Caros Amigos.
É conhecido o fato de que a população de menor renda – os pobres e a classe média – pagam mais imposto que os ricos. Isso acontece em praticamente todos os países do mundo, ressaltando que em alguns há uma mais justa taxação dos mais abastados. Ainda assim, nestes países os que ganham menos pagam elevados impostos indiretos, como no Brasil, de modo que tal estado de coisas não pode ser considerado uma mazela brasileira.
Sabe-se também que a lei tributária é feita pelos representantes do poder econômico, os ricos, que não são bestas de fazer leis que os façam pagar imposto. Isso também não é uma exclusividade brasileira. Em todo lugar é assim. Os pobres e a classe média trabalham, pagam impostos e ficam com o que sobra de seu salário para gastar. Os ricos trabalham, recebem, gastam e só então pagam os impostos. Os ricos não recebem salário. Os ricos nada têm. Os ricos controlam. Eles  controlam montanhas de dinheiro e patrimônio, e por isso não são tributados como pessoa física. É o poder das sociedades anônimas. É legal. Está na lei.
         Em países sérios, os ricos são vistos como parceiros do governo, ajudando-o a resolver o problema habitacional, a criar empregos, a montar e manter a infraestrutura do país, a educar o povo, e assim por diante. Por isso o governo desonera os ricos, oferecendo-lhes vantagens fiscais várias. Lá, os ricos valorizam as instituições onde estudaram e nelas injetam milhões e milhões em forma de doações, colhendo com isso vantagens tributárias. Ajudam o governo com a educação. Lá, os ricos contribuem com a cultura ao injetarem fábulas de dinheiro nas diversas formas de arte, e com isso auferem os lucros fiscais previstos em lei. Em suma, nessas nações a legislação tributária amadureceu sob a consciência do dever social das grandes fortunas, com sua contrapartida de vantagens. Afinal, os impostos são arrecadados para serem devolvidos na forma de benefícios ao povo, para a sociedade, para o país. No Brasil, onde os mais abastados não têm essa cultura, a legislação veio na forma da ganância e da exploração.
          O continente europeu abriga em seu seio muitos dos mais socializados países do mundo. Dito de outra forma, o governo desses países impõe elevados tributos ao cidadão, mas os devolvem na forma de elevado padrão de seus serviços públicos e infraestrutura. Fica claro na matéria que nosso governo arrecada para pagar juros da dívida pública, e não para o retorno social esperado. Em suma: gasta mal. Se pensarmos que o pobre é quem paga mais, o pobre é quem deveria ser o maior beneficiário do devido retorno: educação, saúde, transporte, segurança. Não é o que se vê.
          Os ricos podem pagar por sua educação e saúde, que são os “gêneros” de primeira necessidade numa sociedade que se pretende justa e que ofereça oportunidades iguais. Numa sociedade livre e justa sempre haverá ricos e não ricos, mas nunca pobres e miseráveis. Assim, os não ricos podem galgar a riqueza pelas oportunidades que têm. Ser rico ou não é apenas uma questão de escolha e decisão em ambiente de oportunidades plenas e iguais. Se o sujeito quiser ser gari na Alemanha – com o devido respeito aos garis – será, mas nunca pobre ou miserável ou analfabeto. Se outro resolver ser empreendedor e enriquecer, acrescentará à sua bagagem o que for necessário para alcançar sua meta. Contudo, ambos terão tido as mesmas oportunidades, o mesmo ponto de partida.
          Então, meu querido amigo, para começar nosso governo deveria parar de esperar não se sabe o quê e devolver o que deve a esse povo tão necessitado. Só isso já aliviaria em muito as tamanhas injustiças sofridas. Só isso já colocaria milhões de talentosos e inteligentes brasileirinhos em pé de igualdade com outros filhos do Brasil mais afortunado. Com algum tempo, a riqueza chegaria para quem quisesse pagar o preço. Isso só não acontece por causa de uma penca de maus brasileiros que insistem em vicejar neste maravilhoso país.
          Para encerrar, apenas como exemplo, para quem julga que a imprensa “de direita” não fala da elevada e confusa carga de tributos e das necessárias reformas nesta e em outras áreas, a revista VEJA desta semana à sua página 80 traz a matéria “A Hora de o Brasil Crescer”. De fato, é uma constante a abordagem deste assunto por nossa imprensa livre. Não se trata mais de capitalismo ou comunismo. Trata-se do Brasil e de seus – ainda - milhões de pobres e miseráveis.
          Abraço forte,

Fernando Cavalcanti, 08.10.2009        

A "PONTA"


          Há quanto tempo não te escrevo? Já vão uns poucos anos, a bem da verdade. Lembro-me que diluíste nossa amizade em crescentes volumes do vazio que a destinaria ao seu fim. O porquê nunca me ficou claro, devo confessar. E após o desfecho fatal, que não ocorreu como um evento pontual, único, isolado, identificável, restou o vazio do que foi sem nunca ter sido. Bem sei a razão – iniciaste uma nova vida, e nela não havia espaço para mim, para o mundo que comigo dividias. Fui alijado do teu mundo; fui excluído de tua nova vida, de teu convíviocomo se houvesse contribuído de alguma forma para tanto o querer sem mim. Sinto que contribuí para tua fuga, tua guinada, teu exílio de mim. Após rigoroso exame de consciência, entretanto, custa-me ver algo que tenha feito para ter sido objeto dessa repulsa. Contudo, deve-se respeitar a vontade alheia, principalmente quando fica clara a inconveniência que causamos, seja lá qual for.
          Entretanto, não te escrevo agora para queixumes, que não sou homem de remoer o passado. Apenas a um propósito me serve o passado: - lembrar os fracassos para com eles aprender. No mais, e a propósito, “é uma roupa que não me serve mais”.
          Soube que Amorim esteve em teu consultório a guisa de te levar o convite para a comemoração  de seu aniversário. Ele mesmo mo confessou na festa, já meio ébrio de tanto Old Parr. Confessou-me à língua arrastada: -“Jurava que não virias!” E me jogou nas fuças o convite especial: - o teu. Pairou no ar, aos presentes àquela cena inóspita e surreal, a certeza de tua ausência. Veja como o tipo que criaste converteu-se do malandro adorável ao indelicado inexorável. Não bastasse, ainda como antigamente, confundem-me o comportamento com o teu. Ou melhor, julgam-me ainda capaz de destrinchar-te as atitudes esquivas e fugidias. Para eles ainda sou teu alterego. Não sabem que tens novos amigos, que a mim não são comuns.
          Ainda assim, precisava te escrever para te relatar os fatos a seguir. Bem sei que, na última vez que me escreveste, disseste que te afastara das intrigas, das querelas, dos litígios, de tudo aquilo, enfim, que tira o sossego e a paz do homem. Vê como ainda temos algo em comum: - também eu detesto os litígios e a perturbação da paz. Dou um boi para não entrar numa briga e uma boiada para dela sair se porventura da desventura no centro dela me encontrar. O acaso prega peças, não devemos olvidar.
         A festa foi daquelas que entram para os anais. Uma simples data de aniversário foi comemorada com um regabofe nababesco. Amorim não poupou. À entrada me veio a dúvida: - vim ao casamento de uma grã-fina? Caí em mim ao ver os pares. Uma festa repleta de pessoas do mesmo ramo não pode surpreender, de modo que previ o desfecho: - um tédio de proporções inéditas. No mais, os pseudo-amigos a se trocarem. Nada pode ser mais nauseabundo. Circulei pouco e, exceção feita a um ou outro companheiro que me saudou com cristalina alegria e satisfação ao  me ver, nenhuma conversa que travei foi compatível com o nível esperado. Tolices e anedotas de mau gosto, a maior parte com o fim de apequenar algum dos presentes, e encobertas com o delgado e transparente manto da aparente troça inocente.
          Lá pelas tantas – que não foram tantas assim, visto que me retirei em breve – ouvi duas confissões que me pioraram o estado. Ainda que meu interlocutor me rogasse sigilo absoluto, não o julguei sério o bastante para levar em conta. Ao contrário, tive a nítida impressão de que ele anelava que eu fosse o arauto de suas verdades. Em primeiro lugar, com a cara mais deslavada do mundo, afirmou que a festa era “patrocinada”. Amorim não reunia as condições para arcar com tamanha despesa. Os representantes estavam pagando, segundo ele, metade dos custos da lambança. Em seguida, o tiro de misericórdia – estava todo o mundo ali ganhando uma grana preta com esse tal de caixa dois por uso de material. Em suma: - uma propina, uma “ponta”.
          Por uma segunda vez me senti deslocado – pensei estar em Brasíliaembora o ar estivesse úmido o bastante para sentir o saco pregado às coxas. Então, despedi-me de dois ou três companheiros ainda na flor da idade, e parti. Para os demais saí à francesa. Enquanto caminhava em direção à saída, pensava nos amigos que me esperavam noutro lugar. Não queria estar próximo àquele mundo. Queria fugir dali. Assim como tu o fizeste.

Fernando Cavalcanti, 13.10.2009
       
   

A SAÚDE OU O REGABOFE?

          Descobri hoje, estarrecido, quanto ganhavam as meninas do centro cirúrgico do IJF pelas horas extras que faziam: R$ 3,67 (três reais e sessenta e sete centavos) por hora. Isso mesmo: R$ 44,00 (quarenta e quatro reais) o plantão de doze horas. As horas extras eram contratadas pela instituição para fazer face ao déficit de pessoal em áreas mais críticas do hospital. Em outras palavras, faltam recursos humanos no IJF.
          Eu tencionava escrever sobre a que nível o ser humano desce por dinheiro, tanto para acumulá-lo em excesso quanto para se vender por quase nada. Contudo, se as meninas aceitam essa mísera paga é porque ela lhes serve de algo. E se serve e lhes foi tirada, me pareceu melhor analisar uma suposta razão pela qual o foi. Ou, se assim não foi, instigar a reflexão sobre outras possíveis explicações.    
          Notícia veiculada hoje pelo jornal Diário do Nordeste dá conta dos movimentos da prefeitura no sentido de contratar a empresa que vai organizar, coordenar e executar a parte estrutural da festa de passagem do ano na cidade. A reportagem lembra que o Tribunal de Contas do Município ainda investiga supostas irregularidades no uso de recursos do tesouro municipal no evento 2006/2007. Foram gastos um total de R$ 2.097.500,00 (dois milhões noventa e sete mil e quinhentos reais), dos quais a prefeitura teria entrado com “apenas” R$ 150.000 (cento e cinqüenta mil reais), segundo seus advogados. Esses cento e cinqüenta mil reais foram gastos com os fogos de artifício. Quem quiser ou duvidar, leia a reportagem.
          Vamos ver as contas. Com esses cento e cinqüenta mil reais daria para pagar 40.972 horas extras, ou 3.406 turnos extras, ou 142 dias extras, ou 4,7 meses extras. Interessante é que, segundo os funcionários, a justificativa dada para a suspensão do pagamento dessas horas foi a de que não há recursos. Deixa-se, então, que falte pessoal e que os que estão trabalhando tenham a carga de trabalho aumentada. E que trabalho! Os funcionários que estão em seus turnos normais vão ter, por exemplo, de cobrir eventuais faltas de outros. Dito de outra maneira, os funcionários trabalharão mais sem nenhum acréscimo em seu salário. Quem conhece o IJF por dentro sabe o que isso significa.
          É provável que o custo para queimar aqueles belíssimos fogos tenha subido durante esses anos. A prefeitura, se resolver ficar novamente apenas com essa parte da festa, provavelmente vai precisar desembolsar mais do que em 2006/2007. Mas, digamos que não. Digamos que os vendedores de fogos sejam eleitores da Luizianne e gostem muito dela. Digamos que eles congelem os preços dos foguetes e chuviscos coloridos por pura simpatia com a administração municipal e mantenham seus preços iguais aos de 2006/2007. Já fizemos os cálculos. Diga o que quiser, a prefeitura agirá para mostrar que prefere queimar fogos a oferecer melhor serviço aos pacientes que procuram a maior Emergência do Norte e do Nordeste do país.
          Hoje estive no centro cirúrgico do IJF. Salas vazias, poucos funcionários. Enfermarias com doentes à espera de suas operações para irem para casa. Não se operam os pacientes porque não há pessoal. A festa está sendo preparada. Engraçado é que, quanto mais tempo os doentes passam no hospital, mais sobem os custos para mantê-los ali. É uma coisa que não se entende. Ou por outra, se entende, sim. Trata-se do velho descaso do poder público com a saúde. Ou ainda, virão os defensores da prefeitura argumentar, talvez, que uma coisa não tem nada a ver com a outra, que existe uma verba específica para as festas, e assim por diante. Nas famílias, quando a coisa aperta não há verba especifica para festas que impeça seu chefe de “desviar” seus recursos para o mais importante.
         Ou, vejam: “a gestão municipal busca com essas ações promover Fortaleza como destino turístico para a festa de fim de ano e, concomitantemente, torná-la um espaço de inclusão social, através do fomento da atividade turística, em especial o segmento de eventos”, segundo a secretaria de turismo do município. Eis aí a explicação que não explica. Como pode haver inclusão social nessa cidade se suas vítimas estão na fila para depois dos fogos?
          
                                                                             "O que você faz fala tão alto que não consigo ouvir que você diz.” (Ralph Waldo Emerson (1803-1882)

Fernando Cavalcanti, 15.10.2009

terça-feira, 24 de junho de 2014

GARANHÃO

          Chamou a pequena a um canto e disse: -“Posso contar com você"? Queria contratá-la como fisioterapeuta de seus pacientes. Não queria outro profissional. Era uma forma de atá-la a si. Ela assentiu com um gesto de cabeça. 
          O que não previram foi a paixão avassaladora que sobreveio. Era casado. E já mantinha outro caso extraconjugal com uma colega. Agora a paixão pela fisioterapeuta. A coisa estava ficando difícil de administrar. 
          O diabo era resistir aos encantos da mais recente conquista. Seus carinhos na cama o levavam ao êxtase. As forças se lhe exauriam após uma tarde de amor. Não reunia a determinação necessária para pôr fim ao romance. 
          Assim, se deixava ficar. Decidiu nada decidir. Sabia que era péssimo negócio se envolver com alguém no trabalho. Vê-la quase todo dia causava-lhe uma espécie de náusea, de dormência difusa. Dir-se-ia que ela o drogava com sua presença.
          Lá pelas tantas, desmanchou o namoro. Coisas da vida, tudo que começa acaba. Era melhor assim. Já tinha uma amante. Ter duas era o fim da picada. Se os casos viessem a se tornar públicos, seria um escândalo. Saiu do encontro sentindo-se mais leve. Menos uma a dar conta.

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          O marido tinha um diagnóstico psiquiátrico, um boderline talvez. Equilibrava-se com as sessões que freqüentava.
          Ela caiu na besteira de confessar-lhe o caso, mais um. Ora, o sujeito na peleja entre a sanidade e a loucura definitiva não há que se manter somente com a conversa das sessões, inda mais os chifres a lhe nascerem à cabeça. Tinha de recorrer aos fármacos. Caso sério: -chifre tratado com pílulas. Nunca se tinha visto disso. Ela lhe empurrava as pílulas. Ligava para o terapeuta e ia buscar a receita. Se não usasse os remédios, ela lhe poria mais chifres.
          O homem era acometido de crises de choro fácil, autoestima baixa, o diabo. Que mulher iria querer homem cheio de ziquizira? Tinha medo de deixá-lo, sei lá. Era até melhor que o fizesse. Às vezes ele tinha períodos de euforia. Era quando virava gente. 
            
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          Num desses períodos, arrumou na cabeça as ideias e encafifou de contratar detetive. Antes quis saber tudo, que ela lhe contasse os detalhes. Quem era, onde morava, onde trabalhava, tudo. Ela, que já tinha feito a doidice de lhe contar o milagre, não teve outra saída senão emendar o serviço e confessar o santo. Quando ele virava gente era capaz de tudo. Se ela não falasse, levaria uns sopapos. Com efeito, tentou não falar, e acabou levando umas bordoadas.
           A missão do espião era colher provas. Não acreditava que a mulher e o amante houvessem desmanchado o romance. Queria fotos, gravações telefônicas, tudo que testemunhasse o seguimento do caso. Tudo no mais sepulcral segredo. Ela, é obvio, de nada sabia.
          O homem caiu em campo. Cobrava caro, mas prometia serviço de primeira. Não se preocupasse. As provas serviriam até num tribunal internacional se preciso fosse.

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         Nada descobriu. Ou melhor, nada entre a mulher e o amante. Descobriu, isso sim, o caso do amante com a amante. “Infelizmente, doutor, o homem está limpo”, decretou o espião. "Está saindo com outra dona aí; não tem nada com vossa mulher. Pode ficar tranqüilo.” E lhe entregou as provas da farra do desafeto com a outra.
          Como lhe funcionasse bem a cabeça, enviou as provas à esposa do ex-amante da mulher. Queria lhe transformar a vida num inferno. Essa seria sua vingança. Desfaria o lar do oponente. Plantaria lá os ventos da desavença e da desconfiança. Veria a família ruir ante seus olhos. Esperasse para ver. Antes, porém, fez uma ligação à esposa traída: -“É um garanhão! Sai com todo mundo, o safado! Saía com minha mulher, o escroto!”

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          A esposa não era besta; desde cedo tinha lá suas desconfianças da fulana. Afinal, fora sua amiga. Dela afastou-se tão logo percebeu algo. Não queria ver, nem saber, nem suspeitar. Preferia a inocência da ignorância. Tanto é que quase nada quis ver ou ouvir no material que lhe remeteu o chifrudo. Tinha a filha. Não queria ver a filha envolta nas safadezas do pai.
          Ponderou e silenciou. Era mais negócio. A fim de não passar por idiota, entretanto, lançava, de quando em quando ao marido, as farpas da constatação: - soubesse que ela sabia! O que mais a fazia sofrer eram as palavras do corno ao telefone: -“É um garanhão!” E ponto final. A bomba do corno não explodiu. E o corno, que ainda não despedira o detetive, tornou-se conhecedor da frustração de seu intento.
          O sujeito que sofre das faculdades mentais lida mal com as decepções e insucessos. Acaba por abandonar o tratamento e torna-se, ele próprio, uma granada sem pino.

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          Foi bater no consultório do rival. Foi entrando sem anúncio, numa explícita invasão. O outro estava sentado à larga mesa atendendo um paciente, e ergueu-se num pulo à visão daquele sujeito que entrava sem à porta bater. Não houve tempo para nada. Os dois se atracaram aos murros e pontapés. Vieram de lá a atendente e o segurança aos gritos. Os doentes que aguardavam à sala de espera nada entendiam, e horrorizavam-se ante o surreal espetáculo. Tudo foi muito rápido. Felizmente sem tragédia maior foi o tumulto contornado e o corno posto no olho da rua.
          O médico interrompeu o atendimento no consultório e foi queixar-se no distrito. Terminado o relato, o delegado, homem experiente dos litígios corpo a corpo dessa vida, indagou rilhando os dentes: -“O doutor tem a certeza de que não tem negócio de mulher nessa história, não?” Ao que o respeitável esculápio respondeu: -“Que é isso, seu delegado?? Não diga isso nem de brincadeira..."!!

Fernando Cavalcanti, 14.09.2009

ARMISTÍCIO

          Óbvio é que o momento é de Copa do Mundo e não há como negar que o clima é de festa. A Fan Fest da FIFA, instalada em regime permanente ali no Aterro do Ideal, é a prova disso. Os jogos, razão de ser de toda essa parafernália, estão, em sua maioria, sendo disputadíssimos, e temos visto gols marcados ao apagar das luzes em estádios lotados de torcedores alegres e irreverentes. Em repartições públicas instituiu-se o ponto facultativo e até o feriado em dias de jogos da Seleção Brasileira a fim de facilitar a participação de toda a Nação na festa do esporte mais popular do planeta.
          Porém, quedê as notícias do O Povo e do Diário do Nordeste sobre os assassinatos na Grande Fortaleza? Por exemplo: - hoje saiu, no Diário, a notícia sobre o assassinato de um comerciante em São Benedito além de outros sete homicídios em outros municípios do Estado (http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/policia/comerciante-e-morto-a-tiros-1.1043221). Sobre mortes em Fortaleza, nada.
          No O Povo de hoje apenas a opinião de algumas “autoridades” sobre o que fazer para coibir a crescente violência no transporte público da capital. Sobre os assassinatos no “território da paz” e outros bairros conhecidos por seus elevados índices de assassinatos, nada. Concluo o seguinte: - ou os bandidos estão a cooperar com as autoridades, dando um tempo em sua sanha homicida, ou são os jornais os grandes colaboradores das autoridades. Caso a segunda hipótese se confirme, fica patente a canalhice e a venalidade de nossos jornais.
         Ora, vejam os caríssimos e escassos leitores que isso não seria propriamente uma novidade, e muito menos uma excentricidade à brasileira. Há um precedente inusitado na crônica do futebol. Enquanto por aqui interrompem-se as atividades criminosas para que a Copa do Mundo prossiga sem sobressaltos no presente, no passado um jogo de futebol interrompeu uma guerra. Sim, foi em 1969 na África, mais precisamente no ex-Congo Belga.  Duas facções de concidadãos congoleses matavam-se em conflito quando o Santos de Pelé lá foi jogar. Que fizeram os combatentes de parte a parte? Resposta: - depuseram as armas para assistir o craque. Não houve combates àqueles dias. 
         Em 1975, no mês de abril, uma guerra envolvendo cristãos, judeus e muçulmanos estava para começar no Líbano quando o rei do futebol lá foi jogar. Que atitude tomaram os líderes desses povos à expectativa de ver em campo o maior jogador de futebol de todos os tempos? Resposta: - adiaram o início do conflito. 
          Bem se vê que, ainda que não haja um craque excepcional como Pelé a jogar nesta Copa do Mundo, é bem possível que os bandidos e o Estado tenham, de fato, selado um armistício temporário e que, por isso, tenha-se a sensação de que a paz reine por aqui e alhures em todo esse rincão. 
          Portanto, não se anime o povo nativo dessas paragens: - é uma questão de tempo. Em breve, infelizmente, tudo voltará a ser como antes. Antes que os ufanistas e os simpatizantes da corja petista comecem a tentar colher dividendos da relativa paz e segurança que ora gozamos, deve-se esperar o final do Mundial. As causas e os fomentos da violência estão arraigados em nosso meio e não será um campeonato mundial de futebol que irá trazer a estabilidade e a paz permanente que tanto anelamos. 
          Além disso, não se precipitem a canalha política e a militância petista e seus simpatizantes com o sucesso que tem sido o evento futebolístico. O futebol em si é considerado há muito o ópio do povo. Vive-se, no presente instante, um circo de proporções gigantescas, com doses cavalares de entorpecentes administradas às gentes e ao povo, aquele mesmo que foi às ruas protestar por tudo o de ruim que tem o país, está ainda mais entorpecido do que de costume. 
          Então, é de se esperar o sucesso da Copa. Ela representa uma irrealidade que nos tange para longe de nossos graves problemas sociais, econômicos e estruturais. Seguramente eles não deixaram nem deixarão de existir da noite para o dia. Não são problemas voláteis. Estão aí escondidinhos somente esperando a hora para retornar com sua face cruel. Quando retornarem de sua libação, num futuro bem próximo, testemunharão a destruição paulatina das arenas, a deterioração galopante das pouquíssimas obras e melhorias que foram feitas, e serão obrigados a encarar a velha e boa violência da vida real. Vamos aguardar?

domingo, 22 de junho de 2014

PROCTOLOGISTA FRACASSADO

          Se fosse sábio teria dado ouvidos ao meu amigo Casoba, que me aconselhou usar bigodes. Ele julgava que bigodes impunham respeito, e com eles os clientes me veriam como um médico velho e experiente.
          ​Eu pensava cá com meus botões se não seria a ausência de meus bigodes a causa do vazio em minha sala de espera do consultório. De tanto me atazanar com o argumento, começava a considerar certa a hipótese do Casoba. Eu julgava que o negócio ia muito bem, dentro de uma visão de realização profissional. Todavia, ninguém enche a barriga com realização profissional. Eu só faltava pôr os poucos doentes que me procuravam no colo! Então, não seria a falta de bom trato com as pessoas a explicação.
​          Justiça se faça: - ninguém sai satisfeito do consultório do proctologista. O sujeito vai ao proctologista já querendo matá-lo; já vem à consulta com raiva do pobre proctologista. E quando de lá sai, vem consumado em todos os seus ódios e rancores.
​          Comecei a perceber que também na vida social fugiam-me as pessoas. A ante-sala de minha vida também se esvaziava. Acontecia o seguinte: - nos saraus e nas festas se saudavam aos berros os cardiologistas, os obstetras, os plásticos, os endocrinologistas, etc. etc. “Olha, fulana, este aqui é o doutor beltrano, que me colocou novos peitos"!, diziam uns; “veja, sicrana, ali está o doutor fulano, que me fez o parto da Mariazinha, tão linda”, diziam outros. E assim por diante, todos anunciavam seu médico querido, ícone de novas perspectivas e de nova vida. Foi então que concluí: - ninguém tem a mesma coragem para anunciar seu proctologista. O ódio ao proctologista estende-se além de seu consultório e invade sua vida pública e privada. Também pudera: - mexer nas partes íntimas do povo com dedos e tubos é o fim da picada! Vamos e venhamos! Seguramente, iniciava-se naqueles rega-bofes a explicação para o fracasso de meu negócio de mexer na intimidade alheia.
​          Não bastasse isso, tem mais: - o que se paga ao proctologista é uma miséria. Recebe uma mixaria para mexer nas partes do povo. Além disso, vocês sabem, o proctologista não é perfeito. Com efeito, ele sempre dará motivos para uma nova queixa, e o freguês terá sempre razão. O sujeito que sofre das partes pudendas também adquire, basicamente e mentalmente, algo de anormal. Não que seja doido ou coisa que o valha, mas adquire algum distúrbio na esfera afetiva. Assim, estabelece com o proctologista uma relação perde-perde. Por não perdoar o maldito proctologista, jamais o deixa em paz. Por tudo isso, este profissional é pouco ou nada reconhecido e percebe honorários beirando a mendiguez.
​          Em resumo: nada de bigodes ou cavanhaques. Os motivos de o negócio não prosperar eram claros: - oferecia um serviço que ninguém queria a um preço de merreca. Escolhera mal, eis aí toda a verdade. É bem possível que os bigodes e cavanhaques me ajudassem durante a conversa catequizadora para se deixar examinar. Seriam como a vaselina: - lubrificariam o constrangimento de se expor a um fedelho como eu. Nada mais.
​          Justiça se faça: - o fracasso não me abateu. Não dei a mínima. Resolvi mudar. E após a mudança passei a ser saudado com abraços e bitocas nas tertúlias e saraus aqui e alhures. Ninguém mais me odeia. E concluí: - todo proctologista deveria usar uma máscara de algoz, e não bigodes ou cavanhaques.

Fernando Cavalcanti, Rio, dezembro de 1998

sábado, 21 de junho de 2014

Macarronada soteropolitana

    Percebeu que a pequena olhava insistentemente para ele. Estavam no posto de gasolina, ela dentro do carro esperando não sei quê, ele manuseando a bomba. A princípio não deu importância, mas a insistência era evidente. Disfarçou, mas não pôde deixar de notar como era bela: - morena, olhos verdes, cabelos fartos e ondulados. "Nossa! esse mulherão tá me encarando!", pensou numa excitação explicável.
    ​Desligou a bomba e caminhou em direção ao carro da jovem:
    ​- Bom dia. Tudo bem? Sua voz era mansa.
    ​- Tô ótima! E você? Os olhos esmeraldas estavam fixos nos seus. Ele sentia o coração aos pulos no peito.
    ​- O que você vai fazer logo mais à noite?
     A mulher viera a Fortaleza ver a família por uns dias. O casamento já não ia bem. Se a beldade quisesse, teriam uma maravilhosa noite naquela sexta. Mas ela o contrariou:
    ​- Bem, vou jantar com meu noivo.
    ​- E amanhã? Podíamos ir ao pagode..., insistiu ele sorrindo.
    ​- Eu deverei ir também, mas de novo com meu noivo! Seu largo sorriso de dentes brancos e lábios carnudos bem corados denunciava um não sei quê de travessura.
    ​- Quem sabe a gente não se vê por lá?...
    ​- É... Pode ser! Quem sabe...? Ela respondeu olhando ele se afastar em direção a outra bomba.
    ​No pagode, de fato, ele a viu com o noivo. O homem era conhecido na cidade. Advogado dos bons. Razoavelmente mais velho que ela. A princípio ela não notou sua presença. Ele não se incomodou. Contentava-se em olhá-la de longe apreciando as formas fartas e esguias. Mais um pouco e seus olhares se cruzaram. Ele a cumprimentou com um leve aceno de cabeça e ela sorriu seu sorriso matreiro e brilhoso. Encontraram-se no caminho do toalete. Ele não perdia tempo:
    ​- Vou à Kalamazu hoje à noite - Kalamazu era uma boate. "Não me diga que você vai estar lá com seu noivo"?!
    ​Ela sorriu e disse:
    ​- Estarei lá... sozinha!
    ​Já eram quase duas da madrugada quando ele a percebeu na escuridão da boate. Quando se bateram, ele a puxou para o salão e iniciaram uma dança romântica. Já tinham bebido qualquer coisa alcoólica e isso os deixou mais desinibidos. Mais um pouco e passaram a beijar-se freneticamente. E a coisa toda se resumiu nisso.
    ​Alguns dias depois se encontraram no mercado, na Cidade Baixa, durante o almoço. Ela estava com o noivo, mas ele não se fez de rogado: - cumprimentou ambos. Depois percebeu que o noivo estava a sabatiná-la. "Quem é esse cara?", ele teria inquirido.Ela inventou uma estória e o homem deixou por menos. Poucos minutos depois notou que o noivo se fora e que ela estava sozinha. Foi à mesa e cumprimentou-a novamente. Ela pediu que ele sentasse.
    ​- Eu já tinha te visto aqui outras vezes - disse ela deixando transparecer seu antigo interesse.
    ​- É, eu venho aqui quase sempre para o almoço. O escritório é próximo.
    ​Conversaram por quinze minutos. Já de saída ele foi taxativo:
    ​- Quer comer uma macarronada comigo hoje?
    ​Ora, o motel Del Rey é famoso em Salvador por servir a melhor macarronada da cidade. Convidar alguém para comer uma macarronada é a senha para levar a presa ao motel. Ela não perdeu o rebolado:
    ​- Topo!
    ​A noite inteira se amaram feito os dois animais do Alceu. E ali começaram uma paixão fervorosa e intensa.

                                                                            *****

    ​Ele não sabia mentir. Quando a mulher voltou de viagem, chamou-a na sala:
    ​- Olha, Fulana, tá acontecendo isso, isso, isso, assim, assim.
    ​A esposa não conseguia segurar as pesadas e densas lágrimas que se lhe encheram os olhos. Contudo, não desceu o nível. Em silêncio se retirou ao quarto para que não a visse chorar tudo quanto ainda tinha para chorar. No dia seguinte ele saiu de casa com as malas abarrotadas. Foi definitivo.

                                                                            *****

    ​ Ela prometera: - desmancharia o noivado sem demora. O diabo é que ele desconfiava que estivesse a lhe pôr guampas. Pequenas ausências da parte dela, leves impressões da parte dele. Pôde confirmar quando, ao entrar em certo restaurante mais afastado para um almoço com clientes, viu a jovem na companhia do suposto ex-noivo. Nada fez: - deu meia volta e retirou-se sem se deixar notar. As pernas tremiam. O coração ferido sacudia-lhe o corpo. Entretanto, domou o vulcão que borbulhava calor e fumaça na alma combalida e atraiçoada.
    ​Não mais a procurou. Antes, dela fugia. Sumiu. O telefone tocava, não atendia. Procurava-o no hotel, não a recebia. Não se arrependia de ter acabado o casamento de sete anos. Afinal, ele ruíra devido as suas próprias falhas. Agora, sofria com a traição da morena. Decidiu que o encanto acabara, ainda que a paixão lhe consumisse as entranhas. Resistir às buscas da beldade era tarefa hercúlea. Todavia, não conseguia tirar da cabeça a cena do restaurante. E enchia-se de orgulho ferido e amor próprio.
    ​ Certo dia, entretanto, ela o surpreendeu num bar a bebericar com um amigo comum. Ela sentou-se, o amigo saiu, e teve início a sabatina. Queria saber o que acontecera, detalhes inclusos.
    ​- Não te quero mais. Volta pro teu noivo que ele é que é o homem certo pra você.
    ​Ela não entendia. Ele resolvera não contar o que vira. Pouco importava; ela só arredaria pé após ouvir a explicação que justificasse aquela decisão tão absurda. Insistiu tanto que ele cedeu e abriu o coração. Não queria dividi-la com ninguém, a queria só para ele, pensava em casar com ela. Ela ouviu tudinho em silêncio. Ao final, disse-lhe calmamente:
    - Deixe-me te dizer uma coisa. Ouça bem: - gosto dos dois, amo os dois. Quando estou contigo não penso nele; quando estou com ele não penso em ti. Compreendeste"?
    À essa confissão despudorada, reagiu abruptamente, quase insanamente:
    ​- Pois agora quero ser o reserva! Não quero mais ser o titular! O titular agora é ele novamente! Só quero se for assim...!
    ​Ela concordou, e foram comer uma deliciosa macarronada. O romance durou três maravilhosos anos. Só acabou porque ele foi transferido para Fortaleza. Ela não teve outra saída a não ser casar com o noivo.
    ​Dois anos depois o telefone toca e ele atende:
    ​- Sou eu, meu amor! Vim só pra te ver!
    ​E foram comer uma macarronada à soteropolitana em Fortaleza.

 Fernando Cavalcanti, 10.04.2006

Noivos

          O homem era belíssimo, segundo as mulheres. Um ícone da beleza masculina. Um deus grego. Era estudante de medicina das bandas da Bahia. Passava uns dias em Arapiraca, nas Alagoas, terra de usineiros, de gente abastada, não menos tradicional. Numa festa da padroeira conheceu Lucília, a fisioterapeuta. Bonitinha, tradicional como os seus, inteligente, filha de seu Gonzaga, homem rico, muitos negócios. Seu Gonzaga gostava de tudo certinho, dentro dos conformes - sexo depois do casamento, batizado, a benção do padre, o luto. Mulher subserviente, mas dona absoluta do lar, que ninguém é de ferro. A mãe, mulher de seu Gonzaga, era beata. Rezava até dormindo as rezas da tradição. Festas boas eram as da igreja. Todos os padres lhe passavam pelo crivo. E não gostava de padre jovem que padre jovem, além de gostar de dinheiro, gosta de namorar. E dentre os namoradores ainda há os que gostam de namorar os do mesmo sexo. Padre bom é o idoso, pois que sábio e entendido nos livros e na vida. Sabiam dar curso de noivo, que disso entendiam em teoria. E que ninguém teimasse que padre não podia dar esse curso sob o pretexto de nunca ter sido noivo. Quem sabe da moral não precisa ter sido devasso, dizia a mãe com plena convicção.
         Lucília queria agradar o pai, mas estranhava a falta de assédios do noivo bonitão. Homem como aquele devia ser de libido exaltada, pensava ela. Pelo menos deveria ser. Se viesse querer fuxicar, ela o poria em seu lugar. Não daria desgosto ao velho e bom pai. Afinal, o velho lhe comprara uma casa novinha e montara seu consultório de fisioterapeuta. O noivo estava para terminar o curso e viria morar na terrinha. Já tinham um bom ponto para consultório de doutor médico. A libido do noivo esperaria, ela garantia. Mas... Que diabos de noivo sem tesão!! Seu papel era ser safado; o dela era ser pudica. Aquele é que era o homem para se entregar pela primeira vez. Deve ser virgem também, concluiu. Além de tudo, educadíssimo. Cerimonioso, garboso, um príncipe. Tinha a curiosidade das virgens: - havia de ser um animal sob os lençóis. Ele, por sua vez, concordava com as idéias do sogro. A mãe da pequena estava deslumbrada. Que perfeição! A Lucília parecia que lhe faltava a safadeza comum entre os homens. Vai ver é negócio de criação, ponderou.
          A festa de casamento foi um deslumbramento. Seu Gonzaga gastou uma fortuna. As mulheres caíam o queixo à beleza do noivo. Houve até quem arriscasse: -"É mais bonito que a noiva"!... Ela estava linda; ele era lindo. Percebem? O casamento precedeu em algumas poucas semanas a formatura do noivo. Os colegas de turma vieram em peso. Comemorou-se a formatura no casamento. A festa durou a noite inteira. Nunca se vira uma festa tão grande em Arapiraca. Ficou nos anais.
          De fato, os recém-casados não puderam nem dormir. Já o sol ia a pino quando os últimos convidados saíram. O jovem casal gastou o dia a cochilar. Não houve noite de núpcias ou, melhor, houve dia de núpcias. Ambos a dormir. Dormiram sem dormir. A virgem ainda era virgem e o homem dormia mais que gato de pensão. Ela só se deu conta quando acordou às cinco da tarde. Não entendia por qual razão o casal não se retirou logo após os cumprimentos. Reza a tradição que os noivos partem para a noite de núpcias após os brindes, após as fotos, após o bolo. Eles não; ficaram até o final. Pensou que talvez a festa de formatura de última hora tivesse contribuído para esse desfecho inesperado e excêntrico. Contudo, que coisa esquisita! O marido não lhe tirava um sarro! Vai ser educado assim no raio que o parta! Devia ser por conta das emoções sincrônicas do casamento e da formatura. “Ah!... mas de hoje não passa”, pensou.
          Nada aconteceu na outra noite, nem na seguinte, nem na seguinte, e - por que não dizer? - nem até a quinta noite seguinte. Ela se preparou para abordar o assunto, mas desistiu quando o marido chegou à casa todo contente por causa de uma festa que fariam em sua homenagem aquela noite em Maceió. "Corre, arruma as malas, vamos agora pra Maceió"! – determinou. Ela não pôde argumentar. E partiram.
          A festa aconteceu no apartamento de um grande amigo do noivo. Ambiente aconchegante, velas acesas por toda parte e todos os aposentos, pessoas bem diferentes. Não sei se me faço entender. Lá pelas tantas o marido ficou de pileque. Nem no casamento ele conseguiu. Aliás, no casamento nada bebeu. Ali, naquele momento, estava mais solto, mais espontâneo. Lucília conhecia-lhe um lado novo, outra faceta do marido. Ora, ele até perdia muito daquela masculinidade exagerada! Coisa esquisita! 
          No dia seguinte seu Gonzaga foi surpreendido com a chegada repentina e inesperada da filha. Não falou com ninguém. Foi direto para o quarto, onde se trancou e não quis sair por uma semana. A mãe dava escândalos. Os vizinhos e parentes foram chamados, e nada. Ninguém foi capaz de fazer a jovem abrir a porta. Ao final, ela prometeu que sairia no dia seguinte. O pai, muito meloso, referia-se à filha com um carinho exasperante. A mãe não largava o terço, e rezava a todos os santos. Quando finalmente ela veio para a sala, queriam saber o que havia acontecido.
          Ela foi taxativa: -"Meu casamento acabou... Meu marido é um viadão!"
 
Fernando Cavalcanti, 05.04.2006

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Pa'ece qu'é baitola!...

          Logo mais veremos Alemanha e Portugal, jogo em que estreará o considerado melhor do mundo da última temporada, Cristiano Ronaldo.
          Cá entre nós, Cristiano Ronaldo é uma figura. Diria até uma figura geométrica. Dizem aí os tablóides que se ocupam das fofocas que o homem é vaidosíssimo. Gosta de se exibir e, com isso, expor seus dotes físicos.
         Duvidei dessas informações até assistir, contra minha vontade, ao último jogo entre o Real Madrid e o Atlético de Madrid. Eu estava no solar de meu amigo e compadre Chico quando vejo o povo trazendo para o deque o telão. Era por volta de 5 da tarde. Perguntei o que se passava e disseram: -“Vamos ver o jogo”. E me vi ali, diante do telão do Chico, vendo a partida que decidiria não sei que campeonato.
       Mantive-me de pé durante a partida. Acreditava piamente que, mantendo-me naquela posição enquanto os outros se abancavam entusiasmados, demonstraria minha indubitável ojeriza ao futebol. Antes do apito inicial, bradei em alto e bom som a fim de que os mais jovens soubessem do meu comportamento diante de uma partida de futebol: -“Torço por quem ganha”! Ninguém me deu atenção e, confesso, considerei a atitude uma favorável evolução nas mentes futebolísticas. Noutros tempos tal anúncio causaria uma comoção geral, já que era inadmissível que alguém torcesse por ninguém. Noutros tempos havia de aparecer alguém a exigir que eu me posicionasse, que tivesse um time do coração pelo qual fosse capaz de matar e morrer, que eu, enfim, fosse um brasileiro que segue à risca o determinismo que nos condenou a amar o futebol mais do que a própria mãe. Àquela época diziam-me abertamente um idiota. Hoje não; hoje apenas pensam: -“É um idiota”...
            O jogo foi bom. O Atlético abriu o placar com um gol feiíssimo. (Considero o gol feiíssimo quando a bola entra a muito custo e não balança a rede adversária.) Diante dessa contingência estética, resolvi fazer uma exceção: - time que faz gol feio não merece a minha torcida, de modo que segui sem torcer por ninguém.
         Para encurtar a história, o Real Madrid empatou no finalzinho do segundo tempo e o jogo foi para a prorrogação.  Nela o Real consolidou sua vitória fazendo mais três gols, um deles de Cristiano Ronaldo. (Os do Real Madrid foram gols de excelente qualidade estética, o que conquistou minha incondicional simpatia e torcida.)
         Foi ao momento do gol de pênalti que obtive a confirmação: - Cristiano Ronaldo é uma figuraça! Ao converter o pênalti, o jogador correu para a lateral direita do campo tirando a parte superior do uniforme de seu time. Os companheiros do banco de reservas e os demais jogadores vieram comemorar com ele, e se engalfinharam em caloroso abraço. Desfeito o “bolo de carne” humano, Cristiano Ronaldo voltou a correr pela lateral e saiu a contrair, para a assistência, seus músculos do tronco como faz o halterofilista em concurso de Mister Universo. Quando vi a cena, não me contive: -“Esse Cristiano Ronaldo pa’ece qu’é baitola!...
       Já, já vamos ver e gargalhar com as peraltices do senhor Cristiano Ronaldo. Oxalá os saxões não nos tirem o prazer das cenas de humor proporcionadas por essa figura ímpar do futebol atual. É esperar pra ver.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

UMA COPA REPLETA DE TUCANOS E JAPONESES PROGRESSISTAS

          Em conversa com o meu amigo Ciro Ciarlini, disse-lhe que o futebol é, provavelmente, o único esporte onde é possível o empate. Nem o voleibol, nem o basquetebol, nem o tênis, nem o handebol, por exemplo, permitem tal resultado. Dirá alguém que no basquete é possível o empate e direi que, sim, de fato, o resultado de uma partida de basquetebol pode assim o ser; mas é muitíssimo pouco provável e, mais ainda, muitíssimo pouco comum. Na Fórmula 1 dois carros podem cruzar a faixa de chegada exatamente ao mesmo tempo, mas não consigo me lembrar desta façanha desde que estou a viver. E podemos dizer o mesmo de qualquer esporte de velocidade. Portanto, eis aí os fatos que não me deixam mentir.
            Já o Ciro, que não deixa passar por menos, decretou uma outra verdade absoluta sobre o futebol: - é o único esporte em que a pior equipe pode sair vitoriosa, e que isso nem de perto chega a ser um evento raro. Pelo contrário, tão comum é esta ocorrência no futebol que a ela se referem usando de um nome simpático e intrigante: - a zebra. A zebra é virtualmente impossível em outro esporte que não o futebol. Citem aí qualquer um deles e me digam: - qual outro esporte é passivo da ocorrência da zebra, além do futebol? Nenhum, eis a crua e implacável verdade. Pois temos aí o empate e a zebra como dois atrativos a mais no chamado esporte das multidões. É até bem provável que esse esporte tenha um apelo tão popular justamente por tais razões. Em outras palavras, no futebol tudo é possível. E, coisa curiosa, no Brasil tal constatação deixa-nos ainda mais reflexivos e pensativos na busca de uma ligação entre o que ocorre no futebol e o que ocorre no dia-a-dia do país. No Brasil, também, tudo é possível.
            Ciro e eu confabulávamos sobre futebol a propósito da estreia da Seleção Brasileira, ontem, pela Copa do Mundo de 2014 contra a Croácia. O jogo foi interessantíssimo. Para mim, que detesto futebol, foi um momento de pilhéria e divertido horror. Vejam, por exemplo, que nós, os anfitriões, marcamos o primeiro gol da competição através do quarto-zagueiro Marcelo que meteu, sem querer querendo, o pé na bola num cruzamento do ataque croata, empurrando-a para o fundo de nossas redes. O lance, ao início do jogo, deu-me a sensação de que vinha a bem de uma balançada no escrete brasileiro. Dali em diante o time havia de se lançar, inexoravelmente, à busca do gol.
            O diabo é que sou um sujeito que acredita piamente em conspirações. Sim, as conspirações, em minha humilde opinião, rondam o mundo três ou quatro vezes antes de serem levadas a cabo e, por isso mesmo, muitos delas duvidam. Para mim, não. Para mim elas podem rodar o mundo quantas vezes quiserem, mas sempre hão de se concretizar. Pois ontem, no momento em que a bola dormiu ao fundo do gol brasileiro, pensei: - nossa direita quer a derrota a fim de incendiar o país numa revolta contra o governo petista. Do Oiapoque ao Chuí, do Xapuri ao Cabedelo, o pau ia cantar a torto e a direito. Sim, havia de ter ali, no gol contra do Marcelo, uma conspiração da direita positivista e liberal a serviço do capital especulativo internacional. Quanto teria levado o zagueiro do Real Madrid? Cem mil dólares seria uma quantia irrisória, que a direita desembolsaria sem o menor pudor, para derrubar os petistas. Para o jogador, seria um favorzinho banal que lhe renderia uns trocadinhos para o fim de semana. Um amigo me assegurou: - ele teria recebido 150 mil dólares. Minha ideia conspirativa durou exatamente 18 minutos, já que o Neymar, num lance absolutamente livre de qualquer suspeita, empatou o marcador.
            Não sei se perceberam nosso centroavante, o Fred. Que fez o Fred no jogo de ontem? Resposta: - nada. Digo, em vários lançamentos para a área adversária, por cima ou por baixo, esperava-se o pé ou a cabeça do Fred a empurrar a pelota para o gol croata. Quem duvidar do que digo que reveja os lances onde nosso atacante poderia perfeitamente ter sido mais obstinado. Antigamente se dizia, quando o jogador não fazia muito esforço para ganhar a jogada, que ele estaria jogando de salto alto. Pois direi sem o menor pejo: - o Fred estava jogando de salto alto, talvez um desses saltos-agulha que desafiam as leis físicas do equilíbrio. Sua namorada há de ter-lhe dado umas aulas.
            Mas, minto. E, em mentindo, estarei sendo injusto com ele. Foi precisamente o Fred, que nada fez, quem desequilibrou o jogo. Numa jogada dentro da área adversária, usou de toda catimba e malandragem para simular uma falta contra ele. Resultado: - o juiz japonês marcou pênalti. Eu disse que o juiz era japonês? Do momento em que bateram o centro até o instante do pênalti que não foi pênalti, eu tinha a plena convicção de que o juiz era coreano. Se me perguntarem o porquê desta arraigada certeza, eu não saberia explicar. Com efeito, no momento em que ele marcou o pênalti inexistente fiquei ainda mais convencido de que aquele árbitro era coreano. Minha certeza foi por terra quando exclamei, estarrecido com a incorreta anotação da falta: 
          -"Esse coreano tá maluco"!...
          ...e Bella retrucou, dez milhões de vezes mais convicta do que eu:
          -"O juiz não é coreano; é japonês.".
          Nada poderia descrever o meu terror quando constatei que ela estava certa, e os minguados leitores quererão saber o porquê. Explico. Como o japonês é um povo dado à honestidade e que paga a desonestidade que traz vergonha e desonra com o sacrifício da própria vida, passei a temer pela vida do juiz. Imaginei que ele, quando revisse o lance após o jogo nas imagens gravadas e constatasse seu crasso engano, metesse uma bala na boca num haraquiri tupiniquim sob a linha do equador. Sim, japoneses não costumam deixar barato um ato vergonhoso, ainda que involuntário, ainda que sem má intenção. O fato de seu erro prejudicar alguém deixa o japonês imerso em indizível e massacrante angústia, cujo alívio somente a morte é capaz de prover. Hoje, passadas mais de 24 horas do embate, ainda não soube do suicídio. É possível que o povo japonês esteja surfando na maré progressista atual e que seus conceitos e tradições estejam em decadência, tornando o suicídio do desonrado homem um capricho burguês conservador e idiota. Nunca se sabe...
          De qualquer forma, o Neymar bateu o pênalti e converteu, para a vergonha nacional, essa nem o mínimo incomodada. Para nós, que já nos consideramos um país progressista que jogou ao cesto do lixo os valores ultrapassados, o haraquiri é coisa de capitalista debochado. 
          A outra explicação para o "erro" do árbitro seria dada, novamente, pela minha teoria da conspiração, desta feita armada pelas esquerdas bolivarianas progressistas brasileiras, a fim de se perpetuar no poder através da criação de um grande circo nacional regado às inúmeras e bem fornidas bolsas governamentais. A direita não perdia por esperar. Compraram o Marcelo para entregar o jogo? Pois os vermelhinhos botariam pra quebrar. Comprariam logo o juiz. Nem que ele tivesse que inventar mil faltas dentro da área, não importa. O jogo seria ganho pelo escrete brasileiro, custasse o que custasse. A se confirmar a verdade desta segunda e negra hipótese, não haveria mais dúvidas: - o meritíssimo meteu a mão na Croácia resolvido a não se matar. Deve ter ido, depois do jogo, tomar champanhe na Papuda com o Genoíno e o Dirceu. A direita brasileira que se esgoele e vá reclamar com o Barbosa, digo, com o Papa. 
          Para dirimir as dúvidas de quem quer que seja sobre a existência de qualquer conspiração, o Oscar veio de lá e, com um certeiro "bicudo", meteu o terceiro gol brasileiro e liquidou a fatura. O diabo é que um amigo me escreveu para me alertar sobre o seguinte. O gol do Oscar seguiu-se a um lance irregular onde um jogador brasileiro teria cometido uma falta escandalosa sobre um jogador croata, o que possibilitou a que a pelota chegasse aos pés de nosso atacante e daí ao fundo das redes adversárias. Aí, confesso: - deu-me um nó no juízo. O juiz estava mais para Dilma do que para Aécio, sem dúvida! E pior! O chute que sepultou de vez uma possível vitória croata lembra um bicho, um pássaro que tem bico pronunciado. Não seria um tucano?

terça-feira, 10 de junho de 2014

O fruto da árvore da vida

“Este belíssimo sistema do sol, planetas e cometas poderia somente proceder do conselho e domínio de um Ser inteligente e poderoso.” Sir Isaac Newton

“O fato mais incompreensível a respeito do universo é que ele é compreensível.” Albert Einstein  

         Não é que outro dia meu querido amigo Ciro Ciarlini e eu entramos a discordar? É comum que acordemos em quase todas as coisas sobre as quais discutimos. Afinal, ele foi premiado com uma dessas inteligências únicas, e que pulsam com a força de seu gênio. Debater com ele causa daqueles deleites que nos enchem de empáfia. E mais ainda quando há discórdia. Não a discórdia que isola, que separa, que faz romper a amizade, mas a discórdia que leva ao crescimento, à busca da verdade, à pesquisa e, por fim, ao entendimento ou aceitação das diferenças. Aqui reside a verdadeira amizade, o amor entre os que se dizem amigos.
O assunto da discórdia é considerado deveras espinhoso por grande maioria das gentes, tendo-se até dito que sobre ele não há que se discutir, posto que fosse uma questão de interpretação pessoal. Quanto mais se bate nesta tecla, mais discordo. O que vejo em verdade nessa argumentação é o indiscutível e facilmente reconhecido rosto da ignorância. Às vezes, quero crer que vejo as opiniões pessoais a prevalecer. Diz o Robert Kiyosaki que, se não puder estabelecer que algo é um fato, então é uma opinião. Verdade, sem dúvida, que no assunto em questão, o mesmo debatido por Ciro e eu, as provas dos fatos são aparentemente difíceis de serem demonstradas.
Contudo, nesta questão em particular, que está no bojo do assunto que não se discute, é fácil demonstrar a verdade. Se não, vejamos.
Tudo começou quando entramos a falar da programação genética do ser humano para a morte. Ora, em nossos genes estão a tendência para a hipertensão, o diabetes, algumas formas de câncer e outras coisinhas mais. O sinal verde para o surgimento de tais afecções ocorre em algum momento, mormente à idade avançada. Em suma, o código genético inicia o processo de morte do indivíduo, por assim dizer. Concordamos em tudinho, e até lhe servi um cafezinho para amainar a tensão e estabelecer nossa resignação diante de tão definitiva constatação.
Após o café, fiz o seguinte comentário: -“Não há dúvida que no fruto da árvore da vida, que estava no jardim do Éden, estavam substâncias que evitam tudo isso e também o envelhecimento, levando o homem a viver eternamente!” Eis que o Ciro me saiu com seguinte resposta: -“Deus é mentiroso! Proibiu Adão de comer deste fruto e do outro! O homem comeu do fruto e não morreu!” Lembrei-lhe que não, que o Senhor o proibiu de comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal. Era-lhe permitido comer de todos os outros frutos das outras árvores, incluindo, e principalmente, do fruto da árvore da vida.
A coisa toda perdeu o controle. Ciro não só confirmava a suposta mentira de Deus – já que Adão continuou a viver após comer o fruto – como também não aceitava que eu interpretasse que Adão viveria eternamente se continuasse a comer do fruto da árvore da vida. Para ele, isso não estava lá escrito. Analisemos os textos.
homem foi formado ao sexto dia da Criação. Está escrito assim: “E o Senhor Deus lhe deu a seguinte ordem: de toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” Ainda não existia a mulher, e não há nenhuma passagem que conte que Adão transmitiu a ordem de Deus a Eva. Sabemos que ela estava ciente da ordem quando ela diz ao tentador: “Do fruto das árvores do jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: ‘Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais. ’” Há alguma dúvida de que ela era conhecedora da ordem de Deus? Há alguma dúvida de que ela foi informada em algum momento da ordem de Deus, embora a comunicação não venha explicitada no texto?
​Ciro chama a Deus de mentiroso porque interpreta que o homem haveria de morrer tão logo comesse do fruto, como se este contivesse um veneno mortal de ação imediata. O que aconteceu foi o seguinte: “Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal.” Donde se conclui que as árvores da vida e do conhecimento do bem e do mal estavam no meio do jardim, uma próxima à outra, talvez vizinhas. Conclui-se também – a menos que não se queira concluir por força de uma teimosia qualquer – que o homem tinha a liberdade de escolher entre viver eternamente, com livre acesso ao fruto da árvore da vida e às substâncias que ele continha, ou não mais viver eternamente caso desobedecesse ao Senhor. Seria impedido seu livre acesso ao fruto da árvore da vida se comesse do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Não vejo como ter dúvida sobre este ponto.
​Ciro argumentava que não há passagem no texto que explicite que o homem viveria eternamente caso comesse do fruto da árvore da vida. De fato, não há tal passagem, mas há outra bem esclarecedora, após a desobediência do homem: “Então, disse o Senhor Deus: ‘Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal; assim, que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente.” E mais: “O Senhor Deus, por isso, o lançou fora do jardim do Éden...” E, para garantir o impedimento do acesso do homem à árvore da vida onde estava o fruto que o faria viver eternamente se o comesse continuamente, “[Deus] colocou querubins ao oriente do jardim do Éden e o refulgir de uma espada que se revolvia, para guardar o caminho da árvore da vida.” Eis aí bem explícita a intenção de Deus a que o mal não prevaleceria, e que o homem ainda viveria por um tempo antes que lhe sobreviesse a morte. Tanto é que “todos os dias da vida de Adão foram novecentos e trinta anos; e morreu.”
Cumpriu-se, então, a profecia de Deus, feita pessoalmente a Adão, de que morreria se comesse do fruto da árvore da ciência do bem e do mal.
Como estivemos a debater as propriedades do fruto da árvore da vida, e como Adão viveu ainda novecentos e trinta anos, só uma conclusão é possível à luz da inteligência: como era poderoso o fruto! Se, após dele comer a última vez Adão ainda viveu esse tempo todo – bem como vários de seus descendentes – não há como não concluir que uma degeneração passou a surgir e agir no DNA humano levando às doenças e à morte. Com o passar do tempo, vivia cada vez menos o homem.
          Só recentemente a ciência do homem passou a descobrir elementos que influenciam sua longevidade, e seu tempo de vida voltou a crescer. Mas nada que se compare à longevidade dos que tiveram acesso ao fruto da árvore da vida do jardim do Éden. Esse foi retirado de nós desde que o Senhor daqui o removeu.

Fernando Cavalcanti, 28.08.2010
  

A empáfia do pó

“Grande é o Senhor nosso Deus, grande é o seu poder e a sua sabedoria não tem fim.” (Johannes Kepler em “A Harmonia dos Mundos”, 1619)

“... a biologia é o estudo de coisas complicadas que dão a impressão de terem sido planejadas para um propósito.” (Richard Dawkins, “The blind watchmaker”, 1991)

​   Às vezes fico aqui embasbacado com o que vejo, e muitas vezes com o que leio. E por quê? Porque nada é mais contundente à inteligência do que uma evidência. Se se atropelam as evidências, comete-se uma brutal agressão às nossas funções superiores. E quando vejo ou leio tais insanidades, adoeço.
           Uma evidência é algo inolvidável, incapaz de se esvair da memória mesmo que os ventos do tempo a empurrem para longe. Uma evidência fala tão alto que só mesmo o mais teimoso e recalcitrante dos homens para desprezá-la. O adjetivo correto seria tolo. Ou estúpido. Ou insensato.
         Outro dia o meu amigo Ciro Ciarlini e eu discordamos sobre a história contada em Gênesis, mais especificamente sobre a notável evidência dos efeitos do fruto da árvore da vida. Adão viveu novecentos e trinta anos. Matusalém, seu descendente mais longevo, viveu novecentos e sessenta e nove anos. Noé, neto de Matusalém, viveu novecentos e cinqüenta anos, trezentos e cinqüenta dos quais depois do dilúvio, que sobreveio ao ano 1556 após a Criação. Incluam-se aí possuidores dessa longevidade seus filhos e filhas, que foram muitos, gerados durante todo o seu tempo de vida.
           Toda essa longevidade deveu-se, sem sombra de dúvida, aos efeitos do fruto da árvore da vida, plantada ao centro do jardim no Éden, à qual o homem tinha livre acesso até seu apartamento do Criador. Eram tão potentes as propriedades desse fruto que só por volta do final do segundo milênio após a Criação começaram as evidências da degeneração do DNA humanovulnerabilidade a doenças e uma queda brutal na expectativa de vida.
           Sara, mulher de Abraão, descendente de Sem, um dos filhos de Noé, morreu aos cento e vinte e sete anos. O próprio Abraão viveu “apenas” cento e setenta e cinco anos. E a partir de então caiu a longevidade, a ponto de a expectativa de vida não passar dos trinta, quarenta anos.
           Na Idade Média não foi diferente, de modo que o que a ciência conseguiu após, nos séculos seguintes, com a melhoria das condições de vida dos povos, não foi além de um simples naco de quantidade de vida a mais. Por isso o Criador a chama de “falsa ciência”. Ainda hoje, em alguns países da África morre-se como ao tempo dos anos da obscureza.  
Ora, não me venham imputar a balda do fanatismo, que é o que viceja entre nós, mormente entre os dominados àqueles que controlam as mentes; nem me venham diminuir a seriedade do argumento posto que “vera ciência” esteja repleta de lacunas e rombos em seu frágil corpo. Nunca se viu o acaso criar intenção nem propósito; nem nunca se viu informação que não se tenha parido da volição. Nem me agrada à inteligência que o multiplicar de probabilidades tendentes a zero aproximem-se ainda mais do nada para explicar mecanismos tão perfeitos. A probabilidade de o homem ter surgido da evolução – ou ao acaso - é de uma em dez elevado a dois bilhões!! Dá para imaginar uma possibilidade tão absurdamente pequena e entregar-se a ela impunemente? A natureza está repleta de evidências gritantes de uma Vontade, de uma Intenção, de uma Inteligência.
Mas, por hora, deixemos para lá essas evidências que suscitam tantas e tantas discordâncias e embates. É fato que a “ciência” do homem não aceita as evidências do bem provável, e que prefere acreditar ou supor na improbabilidade de um evento sobrenatural, como o tal Big Bang. Eles o chamam singularidade, justamente por ser uma coisa tão única, tão original, tão particular e tão excêntrica que ali as leis da física deixam de vigorar. Deixemos isso por agora.
O caso é que um leitor, comentando o texto “O fruto da árvore da vida” (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2014/06/o-fruto-da-arvore-da-vida.html), escreveu o seguinte: "Essa questão de Adão e Eva, na verdade, apenas nos serve para mostrar que a cobra (o grifo é meu) tinha razão ao dizer ‘ao comer do fruto sereis iguais a Deus’. Assim se fez e passamos de criatura para criador, construindo a antroposfera e desenvolvendo um conhecimento amplo, maravilhoso”.
       A cobra... Ah, a cobra! “Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selvagens que o Senhor tinha feito...” Cuidemo-nos quanto à cobra. Sua astúcia tem sido mortal. Vejam meu leitor a lhe dar razão. A mulher primeva também lhe deu crédito e por isso morremos até os dias de hoje, interrompidos que fomos de comer do fruto da árvore da vida.
      Ora, não construímos ou criamos nada daquilo que chamamos de antroposfera, que, aliás, é apenas um subconjunto da biosfera. Fomos aqui colocados. Nem um fio de cabelo à nossa cabeça somos capazes de acrescentar, a exceção dos implantes artificiais que mais se assemelham a cabelo de boneca. Nem desenvolvemos conhecimento algum, posto que todas as maravilhas estejam no conhecimento da mente infinita do Criador, e o que temos feito é desbravá-la naquilo que ela se dá a entender. No mais, nada somos.
            E somos. Pó. Eis o que somos. Esta é também uma evidência incontestável e humilhante.

Fernando Cavalcanti, 16.09.2010

terça-feira, 3 de junho de 2014

Leio VEJA; e daí?

          Tempos atrás o meu amigo Ciro Ciarlini, habilidoso e zeloso cirurgião cardiovascular desta cidade, me admoestou. Disse-me que deveria ler outras publicações, além de VEJA. A repreensão perdeu de imediato a razão de ser quando lhe garanti ser também leitor de outras revistas. Pelo sim, pelo não cancelei, após certo lapso de tempo, todas as assinaturas de semelhantes revistas, e tudo pela simples razão de uma mínima contenção de despesas. 
          O diabo é que o pessoal do departamento de vendas de VEJA se agradou de minha humilde pessoa e está a me enviar, há vários e vários meses, o semanário na tentativa de me fazer mudar de ideia e renovar a assinatura. Confesso não ter ainda me decidido, e é muito fácil compreender minhas razões: - ler de graça é melhor do que ler pagando. Assim, tenho recebido, com a competente regularidade da editora, os exemplares do semanário nacional. 
          Uma coisa é certa, e nela estaria certo o meu amigo Ciro em me "acusar": - sou um feroz simpatizante da revista VEJA e de seus colunistas. Tenho sentido saudades do Diogo Mainardi e de sua autêntica, inteligente e mordaz repulsa ao Barba, o senhor Lula da Silva, o maior canalha que o Brasil já conheceu. De resto, ele escrachava, nas páginas da revista e com tal elegância, toda a corja que se instalou em Brasília, asseclas deste nocivo e peçonhento personagem da política brasileira mais recente. Por sorte, e com alguma compensação, estão aí o excelente e também mordaz José Roberto Guzzo, o Rodrigo Constantino, o Reinaldo Azevedo e, aquisição mais recente, o João Luiz Woerdenbag Filho, o inteligente e destemido Lobão. A cereja e a flor do bolo, a escritora Lya Luft, comparece a cada quinze dias em artigos indignados e repletos da doçura e da mansidão próprias das mulheres de elevadíssima estirpe. 
         O amigo Ciro que me perdoe, mas esse pessoal aí tem coragem. Digam o que quiserem, mas nem de perto temem um empastelamento de sua redação. Os que se erguem para dizer que eles mentem, das duas uma: ou foram acometidos de cegueira, ou estão a engrossar o séquito de facínoras que aplaudem a súcia boquirrota e maldita. 
          Observe-se, por exemplo, a reportagem da última edição de VEJA (2376 Ano 47), assinada pelo jornalista Leonardo Coutinho e intitulada "A ILHA DO CARA", em que ele relata e descreve o nababesco paraíso onde mora e vive o ditador e sanguinário Fidel Castro, na ilha de Cayo Piedra, no mar caribenho do sul de Cuba. Como o acesso ao lugar é restrito aos familiares e íntimos amigos do senhor Castro – o Gabriel Garcia Marques era um deles e, dessa forma, pode muito bem ser classificado como um lustroso e vetusto canalha –, até então não haviam se confirmado as suspeitas que indicavam a existência de tão intrigante excrescência na experiência comunista mais bem sucedida de todos os tempos.
          A comprovação do que se suspeitava só foi possível porque um de seus ex-guarda-costas, Juan Reinaldo Sánchez, escreveu e publicou recentemente sua autobiografia intitulada "Os Segredos de Fidel", que chegará ao Brasil no final deste mês pela Editora Paralela. Embora a reportagem revele os principais trechos do nababesco estilo de vida deste cada vez mais decrépito mito, estou ansioso para lê-lo. Degustá-lo-ei não sorvendo uma dose de Chivas Regal, uísque predileto do ditador e cuja garrafa custa 45 dólares, "o dobro do salário mensal de um cubano comum", mas um vinho barato desses que se vendem por aqui mesmo. 
          Os simpatizantes de canalhices históricas e de estórias da carochinha dirão que o ex-segurança de Fidel está mentindo. A reportagem esclarece que "ele foi demitido depois que seu irmão fugiu de balsa para os Estados Unidos". E continua: "Para Fidel, era inadmissível ter ao seu lado alguém que não previu que dentro de sua família havia 'traidores da revolução'". O segurança foi preso por dois anos e conseguiu fugir do país em 2008 depois de passar 8 anos tentando a proeza. Agora, a outra verdade sobre Cuba vem à tona: - a riqueza e a vida de luxo que leva seu ditador, em flagrante e cruel contraste com os habitantes da ilha que sofrem o pão que o diabo amassou em seu dia-a-dia. 
          Na mesma edição o Rodrigo Constantino quer saber das esquerdas brasileiras como elas explicam que a violência tenha aumentado ao mesmo tempo que cresceu a renda dos brasileiros já que, para elas, é a pobreza a causa da criminalidade. Diz ele: "Para começo de conversa, foi no Nordeste que se verificou o maior crescimento da taxa de homicídios, justo na região que experimentou um dos maiores aumentos de riqueza, favorecida por agressivos programas assistencialistas do governo, que até celebrou o advento da 'nova classe média'". E constata, usando das estatísticas, o que eu já havia constatado há algum tempo sem me basear em nenhum número, em nenhuma estatística (http://umhomemdescarrado.blogspot.com.br/2013/10/o-cearense-hospitaleiro.html): - "O brasileiro é tido como um 'povo cordial', mas as estatísticas mostram algo bem diferente. Somos um dos povos mais violentos do mundo". 
          Após o semanário expor as peripécias do bandido que se elegeu deputado – é bandido porque cometeu crimes e esteve preso por conta deles –, demonstra na reportagem "ELE É AMIGO DOS AMIGOS" que o político, deputado estadual pelo PT Luiz Moura, ainda é dos bandidos mais nocivos que se possa imaginar. Foi surpreendido e pego em reunião onde só havia bandidos conhecidos, tramando para incendiar ônibus de empresas tradicionais na capital paulista. E mais. Para eleger-se deputado pelo PT, a reportagem denuncia que ele recebeu doações de petistas de peso como Aloizio Mercadante, Arlindo Chinaglia, João Paulo Cunha, José Genoíno e a louca desvairada Marta Suplicy, e os respectivos valores doados. Por aí se vê que como mente a revista VEJA...
          Depois de reportar o Collor tentando se explicar sem nada explicar sobre os R$ 50 mil que "apareceram" em sua conta bancária e cujos recibos de depósito foram encontrados no escritório do doleiro Alberto Youssef, a revista ainda se dá o trabalho de divulgar uma reportagem sobre os índios que, "patrocinados" pelo governo, "invadiram" a capital da República para protestar contra esse mesmo governo e encerrar com a magistral crônica do J. R. Guzzo em que ele faz, indignado, uma reflexão: "Como Lula, um cidadão que construiu toda a sua vida dizendo que é um trabalhador, pode tratar assim os trabalhadores – os mais necessitados de transporte coletivo de boa qualidade? Para o ex-presidente, isso é um luxo idiota de que o cidadão não precisa. 'Vão a pé, vão descalços, vão de jumento'", foi o que ele disse... 
          Eu, cá com meus botões e assistindo depois às entrevistas do Bolsonaro, concluo: - preciso, cada vez mais, ler VEJA. O Ciro que vá operar, com toda a sua competência, os padecentes e necessitados corações do povo vítima desses monstros da política irresponsável e destruidora de vidas e sonhos.

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...