segunda-feira, 14 de abril de 2014

Vergonha e silêncio

          NÃO sei se sabem que moro ali, pertinho ao aterro da Praia de Iracema. Antigamente, o referido aterro era conhecido como "Praia do Ideal". Eis que ontem, mais uma vez, a antiga Praia do Ideal foi palco de mais um furdunço, de mais um incômodo aos moradores de seu entorno. Contudo, devo admitir: - o rega-bofe foi menos intenso, menos perceptível. A bem da verdade verdadeira, a balbúrdia era tão discreta que nem chegou a incomodar, de modo que o referido transtorno nem chegou a se concretizar plenamente. Depois, já avançada a noite, descobri do que se tratava: - comemoravam-se os 288 anos desta decadente e rendida cidade.
          A Praia do Ideal é, anualmente, palco do Réveillon local, com sua queima de fogos e shows de artistas consagrados que cobram cachês milionários.
          (Alguém dirá que não chega a tanto, que estou a exagerar, que a coisa não é bem assim, e por aí vai... O fato é que, todo ano, durante a administração da petista loira desvairada, questionavam-se os valores que o poder público gastava nessas rapiocas. Como de praxe, o quiproquó em torno dos custos das festas resultava em absolutamente nada.) 
          A festa mobiliza todo um contingente do serviço público do estado e do município. E mais: - fecham-se ruas, desvia-se o trânsito; o barulho do equipamento de som é ensurdecedor; a multidão ensandecida, inebriada pela ilusão do novo ano e sob efeito do álcool, promove toneladas de sujeira material e biológica, e, ao dia seguinte, o cenário desolador é a mais nítida evidência de nossa insensatez coletiva.
          (Ano passado, em julho, antes do 14, mas já fazendo parte das comemorações do aniversário da revolta de 1789, vínhamos, Bella e eu, pela Av. de la République em direção à praça. O show musical estava para começar e a multidão ocupava todo o espaço do logradouro, à exceção das ruas do entorno. Sim, as ruas e avenidas que passam ao lado da Praça da República, em Paris, estavam abertas e o fluxo de veículos era perfeitamente normal. Os restaurantes e bares estavam lotados. Inúmeros veículos da autoridade policial estavam posicionados ali perto e, pelo que vi, não tiveram muito trabalho. A festa acontecia na praça, mas a cidade se movia sem transtornos. O único espaço público “cedido” foi o espaço da praça que, por incrível que pareça, já é de domínio público. A festa não atrapalhou a cidade, não impediu os moradores de se locomover com seus veículos, nem alterou o itinerário dos transportes públicos. Ninguém ocupou indevidamente as ruas e avenidas, que se mantiveram em sua utilidade e função de manter a fluidez do trânsito. Ao início da música, estávamos a degustar a deliciosa culinária parisiense em restaurante próximo e quase não se ouvia o som. O pessoal da sonoplastia regulou a intensidade e a altura deste a fim de que não ultrapassasse os limites da praça e às 22 horas tudo estava terminado.)
          POIS ontem, confesso, por aqui a coisa foi pífia, encabulada, quase imperceptível. Coisa de se estranhar, já que gostamos mesmo é de incomodar e azucrinar o sossego e a paciência alheia. Por exemplo, a lei do silêncio. Que diz a lei do silêncio? Diz a tal lei em seu artigo 617 que "é proibido perturbar o bem-estar e o sossego público ou da vizinhança com ruídos, algazarras, barulhos ou sons de qualquer natureza, produzidos por qualquer forma que ultrapassem os níveis máximos de intensidade fixados por Lei".
         Ontem, posso jurar, o ruído da festa de aniversário desta paupérrima Fortaleza no aterro da Praia do Ideal era o menor que meus ouvidos já ouviram em todos esses mais de 14 anos em que moro aqui. Mesmo o mais irritadiço ser a viver por essas bandas conseguiria conciliar o sono durante a "balbúrdia", algo bem diferente das festas de Ano Novo que aqui se comemoram. Ontem os estertores estavam de acordo com o citado artigo da lei. Para o Réveillon recorre-se a um artifício da mesma lei, digamos, uma "exceção" na mesma. (É sabido que neste arremedo de país as leis têm, todas, artigos, parágrafos e alíneas que servem a atenuar seu arroubo inicial ou a amenizar a sanção cominada ao eventual infrator, de modo que a lei torna-se uma peça cômica e destituída da força necessária a coagir. Pois o mesmo ocorre com a "lei do silêncio".)
          Em seu artigo 622, diz a patética lei: - "Não se compreendem nas proibições desta Lei os ruídos produzidos por III-Bandas de músicas em procissões, cortejos ou desfile públicos"; e em seu artigo 624 ela assevera: - "Somente durante os festejos carnavalescos e em outras festas folclóricas serão toleradas, em caráter especial, as manifestações já tradicionais". Ou seja: - não é permitido fazer barulho porque não se pode perturbar o sossego público ou da vizinhança, mas é permitido, como exceção, fazer barulho e perturbar o sossego público e da vizinhança no carnaval e no Réveillon. Eis aí tudo. A vizinhança e o entorno do local dessas festas que se virem para tolerar o barulho ensurdecedor e os transtornos do trânsito. 
          Mas eu dizer da festa de ontem. A festa de ontem comemorou sem comemorar. Pelo menos aqui no aterro. Pouca gente, trânsito livre, ruas liberadas e – por que não dizer? – um sossego bem ao gosto dos que apreciam uma boa sesta. Afinal, comemorar o quê? Comemorar o aniversário de uma cidade horrível de se habitar e viver? Comemorar o aniversário de uma cidade que mais se assemelha a um ajuntamento caótico de gente? como se fora um campo de refugiados a fugir de, e sem abandonar, a guerra já não tão silenciosa e cada vez mais cruel que está a dizimar sua presumida dignidade? Comemorar os milhares de assassinatos anuais e crescentes que nos acumpliciam uns aos outros como numa corja de malfeitores insensíveis e bestiais? Comemorar nossas negras e silenciosas madrugadas diárias, que tornam nossa pólis uma cidade fantasma como uma Gotham City sem Batman, sem heróis, sem mocinhos, sem homens da lei que nos protejam? Não há o que comemorar. Não temos face. Não temos rosto. Não temos caráter. Nosso grau de prostituição atingiu o limiar e já não há como retroceder: - fomos longe demais. E nem saberíamos aonde ir. Nossos gênios nunca existiram.
          As comemorações do aniversário de Fortaleza, ontem, não fizeram barulho, um salutar ruído, porque só o silêncio pode manifestar o nosso mais profundo pesar e nossa mais incontida vergonha pela podridão em que nos tornamos.

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