quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Mais do mesmo, mais uma vez

           Chamou-me a atenção a manchete de certo periódico local que dizia: “Sargento da Marinha morre após se afogar”. 
          Segundo o pai dos burros, exceção feita aos sentidos outros que tem o verbo, os figurados, afogar-se significa “morrer na água por asfixia”, “fazer morrer por asfixia num líquido qualquer”.
          Se substituirmos, na manchete, “se afogar” por um de seus dois sinônimos, teremos que certo “Sargento da Marinha morre após ‘morrer na água por asfixia’”. Bem se vê que há uma redundância na construção proposta. Bastaria ao referido diário ter dito que o sargento da Marinha afogou-se e já saberíamos do desfecho fatal do caso.
          Assim como “descer para baixo” e “subir para cima” estão incorretos, “morrer afogado” também o está, pois não?  
          Vivemos ao tempo da redundância e das redundâncias, notadamente a das palavras. E por quê? Porque as palavras, ao que parece, perderam e vêm perdendo cada vez mais seu valor. É preciso dizer “não” uma meia dúzia de vezes antes que se entenda plenamente que se está negando algo. Mesmo o “sim”, com toda a sua permissividade implícita e explícita, está sujeito a repetições incômodas e desnecessárias, ainda que em menor proporção. 
          A pergunta que se pode fazer é: por que cargas d’água a negação tem sido tão menosprezada?, tão maltratada?, tão pouco crível?, tão pouco aceita? Ao que parece, vivemos um tempo de aceitação completa a tudo que se nos impõe e a tudo que nos é sugerido. Existe uma cultura da aceitação completa, uma vez que se parou de pensar. Quando não mais se pensa, o sim está na ponta da língua.
         Se não se pensa, estamos diante de uma vida que mais se assemelha a um algoritmo já bem traçado e bem delineado. Temos preparadinhas a reação e a resposta para tudo, e uma resposta afirmativa, necessário dizer, sob pena de sanções diversas.
          Perceba-se que dizer que o sargento afogou-se, aos nossos dias, é pouco, muito pouco. Se o disséssemos, correríamos o risco de não nos fazer entender e alguém indagaria “como está o sargento após seu afogamento”? ou “está internado o sargento depois que se afogou”? Assim, para “garantir” e assegurar a morte do pobre homem, a manchete afirma que ele morreu mesmo, de fato, “de vera”, após morrer na água por asfixia. Não pode haver dúvida.
          Pode-se, talvez, concluir que o não não é mais resposta que se dê. Mesmo que se tome atitude que indique claramente que o ser está a negar o que se o propõe, ainda assim perguntar-se-á explicitamente a fim de que se dê chance à rejeição do não. 
          A descarada desvalorização do não tem ainda outra razão: - a elevada freqüência e prevalência da dúvida entre nós. Quanto mais dúvida, mais nãos rejeitados. Não sei se me faço entender. 
          Eis que, então, vem acontecendo o seguinte. O governador deste pobre Estado do Ceará, filho de uma classe de família que bem poderia se taxar de "família sem papas na língua", debochou do procurador-geral de contas do Estado por ele estar fazendo o seu trabalho  (http://tablet.opovo.com.br/app/opovo/canais/politica/2013/01/23/4129051/cid-diz-que-procurador-do-mpc-quer-aparecer-no-caso-do-cache-de-ivete.shtml). Como o trabalho do procurador é fiscalizar os gastos do executivo, o senhor governador irritou-se com sua insistência em questionar seus gastos. Semelhante ao pivete mal-criado, filho de pais indolentes e permissivos que nunca dizem não, o executor-mor da província classificou o procurador como "garoto que deseja aparecer e fica criando caso". 
          Puxemos a sardinha aqui pro nosso tema. O governo parece ter gasto além da medida e, na hora de prestar contas, o fiscal não gostou porque entendeu que o governo gastou além da medida. Que fez o fiscal de contas? Disse: -"Não!" Como se julga incontrariável, o senhor governador se saiu com o desdém. Talvez pense que o procurador-geral está em dúvida sobre sua própria contestação e recue no último instante. 
          Para a decepção do governador, o procurador e os órgãos e associações ligados ao Ministério Público de Contas retrucaram à altura e demonstraram que a infantil atitude partiu dele próprio, evidenciando seu pouco zelo pelas instituições democráticas. 
          Observem os já entediados leitores que os de tendência tirânica são, no poder, uma ameaça à liberdade de expressão e à atuação de órgãos que lhes fiscalizam as atividades e atos. Na vida social, idem, querem-nos à mercê de tudo o que se impõe e que se estabeleceu como norma pétrea. Não nos é permitido agir ou querer diferente porque os pensamentos tirânicos estão até mesmo a engendrar leis que prevêem punições severas àqueles que ousarem pensar de outra forma. 
          Todo o imbróglio entre as aludidas autoridades se refere ao pagamento de um cachê a uma artista da música, que se apresentou em espetáculo promovido pelo governo do Estado quando da inauguração de um hospital no interior. O povo – sempre o povo! – compareceu maciçamente, sem dúvida, não se importando quanto o governo pagou pela festa em que este mesmo povo se empanturrou de sua contínua e perene catarse. 
          Na capital, muitos dentre o povo, os politicamente lúcidos, se manifestaram contrários ao cachê pago e se indignaram com mais essa lambança com o recurso público, alinhando-se ao Ministério Público em sua cobrança por austeridade no uso do dinheiro.
          Entretanto, a maioria, a esmagadora maioria, há de se ter posto ao lado do "circo" do governante absoluto, dando-lhe legitimidade em sua gastação desenfreada. O não do Ministério de Contas, na pessoa do procurador, há de ser, assim, um grito sufocado em meio à multidão ensandecida e sedenta de ignorância. 
          Portanto, mais do mesmo. Mais uma vez.

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