quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A morte do óbvio


          "Paz, felicidade, e alegria para o ano de 2013!", dizia a entrevistada de certo telejornal. Antes o âncora anunciara latrocínios, assassinatos, pessoas que pereceram à porta do hospital a espera de atendimento, acidentes automobilísticos fatais, assaltos, e tudo o mais de ruim que somente o bicho homem é capaz de proporcionar. Tudo isso aqui, por esse Brasilzão afora.
          O estado de saúde do famigerado Hugo Chavéz piorou e na Venezuela as comemorações do ano novo foram canceladas. Há de ter sido uma senhora piora já que o homem é, para eles, um senhor presidente. Sobreviverá seu líder ao ano que vem? Ninguém sabe... Em todo caso, e ao que parece, os venezuelanos preferem se condoer de um único mau prognóstico. 
          Por aqui, mesmo sem uma trégua em nossas contínuas e perenes tragédias como anunciado no já referido telejornal, o prognóstico para o ano é de "paz, felicidade, e alegria". 
          É mesmo? Será que é mesmo? Deve ser, porque não seria "politicamente" correto pensar de outra forma. Por exemplo, como a nossa festa de Réveillon. Quem ousaria divergir de tão arraigado paradigma? Devo admitir: quando nossa loira e desvairada ex-prefeita anunciou que a prefeitura não realizaria, esse ano, nossa festa de Réveillon, vibrei de contentamento. Não obstante, que importa o que penso e o que acho? Nada importa, a ninguém importa – essa seria a mais absoluta verdade.
          Quem liga se disser o que todos estão carecas de saber? Quem liga para frases de efeito e, mais ainda, para textos de efeito, que se debruçam sobre nossa insensatez e teimosia em seguir com mais do mesmo? Ninguém liga. O óbvio está se tornando cada dia menos óbvio e é muito possível que um dia desapareça. Em breve o jornal trará estampado na manchete de capa em letras garrafais: "Morre o óbvio"; e a matéria iniciará dizendo: "Morreu ontem de velhice um velho conhecido de todos, o óbvio. Ele estava no CTI há vários anos e não resistiu aos incontáveis insultos sofridos nos últimos meses. O sepultamento será amanhã etc. etc. etc."
          E, assim, ninguém mais ouvirá falar de sua existência. Será esquecido tão rápido que nem lhe farão a missa de sétimo dia, por pura falta de memória. Dele não sentirão saudades. Terá ido tarde, eis a verdade. Depois disso nada será como antes. Sem ele nada mais será óbvio. Tudo há de merecer as explicações mais estapafúrdias e esdrúxulas que se poderão dar. Novas profissões nascerão, e novas escolas serão criadas para estudar os fenômenos cuja razão de ser pereceram com o óbvio.
          Segunda passada, ao chegar ao hospital, me deram a notícia: -"Faleceu o Zé Milton!" (O Zé era o funcionário da segurança no segundo andar, à entrada da unidade 11 e do gabinete odontológico.) Morreu no sábado, 29 de dezembro de 2012, a menos de três dias do ano que estava para chegar. Na sexta ele veio de lá, seu velho sorriso estampado no rosto simpático, a me desejar o óbvio para o ano que se inicia. Como de praxe, é óbvio, desejei-lhe o mesmo. Pois aconteceu-lhe o óbvio. Como o óbvio está no CTI, nas últimas, preciso encontrar urgentemente alguma explicação que me convença do porquê dessa tão inconveniente morte.
          Hoje, por uma infeliz coincidência do destino, fui chamado a amputar um membro. Era uma criança, uma criança de 10 anos, uma linda criança do sexo feminino, cuja voz denunciava sua exuberante inocência diante da crueldade de que fora vítima. Aconteceu-lhe o seguinte.
          Seu pai, proprietário de um pequeno comércio na cidade de Icó, no interior do estado, foi vítima de um assalto. Maria Eduarda, sua filha, brincava à entrada do local quando chegaram os facínoras atirando para todos os lados. Uma bala atingiu-lhe a perna e estraçalhou-lhe os vasos sangüíneos. O tempo entre a agressão e o socorro e a gravidade da ferida contribuíram para o mau resultado do reparo vascular inicial, e ela evoluiu com uma gangrena isquêmica da perna esquerda. 
          O óbvio, que está a agonizar no CTI junto com a saúde e a segurança pública, teve acessos e convulsões. Dir-se-ia ser seu momento final, seu último suspiro. O que representaria seus ataques e apoplexias? Talvez queira dizer que não importam que se lotem as cadeias e se alastrem as novas penitenciárias em território nacional com as desejadas e bem-vindas mudanças no Código Penal, como a prisão perpétua e o desaparecimento de badulaques jurídicos criados para livrar a cara dos tubarões do poder, e que acabam por beneficiar bandidos de carreira, desde que se trancafiem esses malfeitores que trucidam pessoas de bem e crianças inocentes. Mas ele está de mal a pior, o óbvio. Já não lhe creditam uma nesga de seriedade. Se os bandidos fazem as leis, ou têm o poder de mudá-las, por que as mudariam? se ela, a lei, vai servir a puni-los? O óbvio usaria de tal argumento, mas ele está quase morto e enterrado; é só uma questão de tempo.
          E eis que um criminoso, um dos tais tubarões, um tal José Genoíno, julgado e condenado a quase 7 anos de cadeia na maior instância jurídica do país por corrupção ativa e formação de quadrilha, assumiu hoje seu mandato de deputado federal como se sobre ele não pairasse um "tudo consta". Que nos diria o óbvio se disso soubesse? e antes que se vá de vez? 
         Antes da triste missão a mim imposta, mutilar por necessidade imperiosa uma criança na flor da infância, recebi por correspondência eletrônica, de um amigo, um artigo dando conta de que a imprensa inglesa está em guerra contra o Brasilzão porque os interesses dos investidores britânicos estão sendo reiteradamente contrariados por nossos competentes e sérios governos de "esquerda"; dando conta de que o desemprego lá aumentou e aqui encolheu; dando conta de que nossa economia cresceu e a deles minguou; dando conta, enfim, de que nosso país está um primor e o deles uma bela porcaria. 
          Não saberia dizer o que mais me indignou, se a tibieza do amigo – um homem bem formado, viajado, bem alimentado, bem casado, asseado, de bolsos recheados do bom e tão combatido vil metal –, se a afronta ao pobre e indefeso óbvio, nunca antes tão insultado em toda história da humanidade. 
          Ainda agora me escorrem as lágrimas, não pela Inglaterra e sua tragédia econômica que ninguém vê; não pelos eleitores do José Genoíno, seguramente pouco incomodados de terem votado em criminoso condenado; não por mim mesmo, um tolo a perder tempo injetando às veias de um moribundo – o pobre óbvio – um soro tão diluído quanto café de preso. Choro por Maria Eduarda, cuja vida foi tragicamente e radicalmente mudada por uma sociedade podre, canalha e egoísta; choro por meus amigos idiotas que se negam a ir ao CTI visitar o óbvio em seus momentos finais, enquanto ainda há tempo e enquanto os britânicos não resolvem invadir seu Brasilzão; choro por quem acredita em prognósticos tão favoráveis, quando os "critérios de Ranson" apontam para uma pancreatite fulminante e evidentemente fatal; e choro pelo Zé Milton, tão jovem e tão do bem, prematuramente passado da vida para o além. 

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