domingo, 15 de julho de 2012

Cura te ipsum!

          A dor dói no doente; a dor não dói no sadio. Portanto, onde dói a dor? A dor dói naquele que está enfermo. 
          Se te machuca algo, então estás enfermo, padeces de um mal qualquer. Se alguém te causa dor, será esse alguém tua doença? ou será tu mesmo o que padece? Se julgares o outro o teu mal, o que te impedirá de o remover, de o destruir, de o eliminar? Com que ímpeto e com que força destruidora o consumirás! Serás mais um assassino passional a perambular pelas varas e headlines.
          Mas, se o mal reside em ti – teus ciúmes, teus acalentados projetos e sonhos frustrados, teus quereres de criança mimada, enfim! – que direito tens de dar- te o remédio errado? que direito tens de suprimir de outrem a paz que lhe é devida, quando somente a ti mesmo o mal que acarinhas te diz respeito e somente a ti? 
          Fiel inimigo é o espelho!... Denunciador de imperfeições plásticas e reflexo do ser!... Se todos os espelhos do mundo fossem como a pintura de Basil Hallward, havíamos de contratar um curador para um Louvre de obras cujos temas seriam sempre uma figura humana em decomposição, uma vida em decomposição, um caráter em decomposição... 
          Mas não. Como Dorian, escondes no teu sótão ou no mais recôndito salão da tua alma tua mais hedionda caricatura, alimentando a ilusão de que és, ao invés de carrasco, a vítima. A dor que te consome é tua, somente tua, mas queres doá-la a outro que te sirva de salvador de teus males, dos quais por si mesmo não és capaz de te livrar nem expiar a tua culpa. Necessitas deste outro para que seja teu mal, a razão de tuas desventuras e de tuas falências, aquele a quem n'outra vida foste a moléstia e que agora de ti ajusta contas, como a equilibrar suposto desequilíbrio na ordem de um universo impossível de permanecer sem tal medida. 
          Tolo! Se permaneceres dando abrigo e guarida a teus desvios e à moléstia que jaz em ti mesmo enquanto a atribui a outro, jamais te curarás. Mergulha em ti mesmo, olha o quadro que Hallward fez de ti, e grita ao teu espelho: "Cura te ipsum!"

Paris, 15 de julho de 2012

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