sábado, 30 de julho de 2011

Óbvias tergiversações

Nunca sabemos em que vamos nos tornar. Conheci um sujeito que em criança era o próprio demônio. Quando se fez adulto tornou-se o homem mais doce que se poderia – ou melhor, que não se poderia – imaginar.
            Devem ter assistido ao filme sobre “O estranho caso de Benjamin Button”.  No livro do Fitzgerald, que escreve na 1ª pessoa como se fora o B. Button, ele começa dizendo: “Eu nasci sob circunstâncias pouco usuais.” Não era pra menos. O sujeito nasceu com a idade de 80 anos. Imaginem o que pensariam as pessoas da época sobre o futuro desse indivíduo. É provável que não lhe dessem muito tempo de vida. Seria a progeria. Mas, eis que o “garoto” passa a rejuvenescer e vive a vida ao contrário no que concerne ao tempo.
            Então, é fato inconteste – nunca se pode prever em que uma criança irá se tornar. Dito assim parece que estou a alardear o óbvio.
            Outro dia Paulinho me bate o telefone, num desses raros acontecimentos da vida. Paulinho só me liga quando conta comigo para amputar os membros dos desafortunados de sua enfermaria da Unidade de Queimados do IJF. Anseio, de sua parte, uma ligação para um café, uma cerveja, dois dedos de prosa, mas não. Assim, quando o vejo a me ligar já se me encrespam os pelos como as cerdas bravas do javali, usando uma do Nelson. E o que me disse ele? Disse-me que gostava do que escrevia, mas que, às vezes, eu “viajava na maionese”. Viajar na maionese, fui ver, significa “estar errado sobre algo”.
            Embora não me tenha dito sobre o que especificamente estava errado, pediu-me para ir aos Queimados avaliar um de seus pacientes. Devo ter amputado algum membro em dia subsequente, pois é para isso que me chamam, mas continuo sem saber em que viajo na maionese. Fiquei, desde então, pensando em minhas viagens no branco e delicioso gel e cheguei a mais inaudita das conclusões: ninguém se dispõe a dizer o óbvio.
            Ninguém, vírgula. Disponho-me a dizer o óbvio. Há belas e meigas crianças que se põem, à adultícia, as mais terríveis máscaras. Estou a usar de uma espécie de eufemismo, já que máscaras não se prestam a esconder a virtude ou a beleza. Ainda assim preservemos, aos que as usam, o direito ao remorso. Imaginem, no senhor Benjamin Button, um velho canalha a se transformar na pura e lânguida criança do futuro. Ou esqueçamos o personagem do Fitzgerald e imaginemos o contrário.
            Segundo o Rousseau, em seu estado natural o homem é puro e imaculado como uma fonte d’água límpida e transparente, justamente e condizente aos nossos bíblicos pais. Assim, algo em algum momento corrompe o homem. (Reparem que insisto no óbvio, e que o filósofo não se reportou aos nossos bíblicos pais.) Se algo o corrompe, em cada caso há que se buscar seu agente corruptor se se pretende entendê-lo.
            Tenho um amigo que, diferente do outro que se aperfeiçoou, deteriorou-se com os anos. Ocorreu com ele o seguinte. Era atleta bem sucedido, ganhador de competições, títulos e medalhas, da infância à adolescência. E aconteceu de, em adulto, vir a apreciar o uso de drogas legais e ilegais. Se passar de abstêmio a bebedor foi o assassinato de sua saúde física, passar ao uso de drogas ilícitas representou a degeneração de seu caráter.
            Drogas são drogas, não há o que discutir. Cada um escolhe se as usa ou não, e como as usa. Usar a droga que é pivô e razão de ser do crime organizado é fomentá-lo e financiá-lo. O sujeito que o faz pode bem ser visto como participante de tudo o de ruim que está ligado ao seu consumo, distribuição e produção. Afinal, é para ele que o sistema criminoso trabalha.
            Pergunto-me ainda, do alto de minha completa ignorância e após tantas considerações à periferia do tema, o que teria corrompido meu amigo. Quando me assaltam as idéias nefastas, as tentações diárias e inevitáveis, tento me acautelar em minha consciência. Erra-se ou faz-se o mal de forma consciente. Esconder-se covardemente no coma momentâneo é mau modo de proceder. A certa idade já não é possível esconder-se de si mesmo. Então, se procedo mal não terá sido por desconhecimento. Sabemos o que estamos a fazer.
A tentativa constante de negar a existência do mal vem a serviço da justificativa dos erros. Seria a forma mais moderna, ainda que pouco inteligente, de aplacar a angústia e a culpa. Ver-se envolvido intimamente, por laços de amor fraternal, com pessoas que fazem papel central no teatro de uma das maiores mazelas humanas da atualidade é de deixar qualquer um perplexo. Ninguém é perfeito a ponto de ter a autoridade para atirar a primeira ou a última pedra.
São essas as reflexões que faço diante de tão desconcertante situação da vida.

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