sábado, 30 de abril de 2011

A conspiração da verdade

Vem cá. Vocês pensam, em sã consciência, que o procurador Ricardo Rocha e o Tribunal de Contas do Município iriam maquinar números sobre as contas da prefeitura de Fortaleza? Custa-me crer nessa possibilidade. Tudo é possível, tudo é possível, mas os números são frios e não mentem.
            Dirão alguns que podem se colocar números incorretos, o que daria um resultado incorreto. Porém, não consigo imaginar todo um órgão como o tribunal empenhado nessa grande conspiração. Por que é que esses governantes de “esquerda” estão sempre se sentindo perseguidos? Têm uma notória paranóia. O engraçado é que as “esquerdas” dominaram o país, mas ainda se sentem perseguidas, ainda se sentem objeto das conspirações golpistas. As “esquerdas” detêm o poder no estado e na capital e ainda mantêm os prefeitos do interior mansos e cooptados. Usando uma do Nelson, os prefeitos do interior são como cadelinhas amestradas – comem todos na mão das “esquerdas”. Mas é possível, sim, a conspiração.
            Vejam, por exemplo, a conspiração de que os habitantes da Terra são vítimas. Há pouco mais de cento e cinqüenta anos o senhor Charles Robert Darwin publicou o seu “A origem das espécies por meio da seleção natural”. Pois temos sido enganados por pouco mais de cento e cinqüenta anos. E quem diz isso? Quem o acusa e a seus seguidores de conspiradores? Ora, a ciência. É a própria ciência quem lhes aponta seu implacável dedo acusador. Não pretendo entediar quem me lê, e direi apenas que o mico do evolucionismo fere frontalmente a lei termodinâmica da entropia e o princípio químico de Le Châtelier, apenas para citar dois exemplos. Ainda que tentem desesperadamente adequar seus dogmas aos fatos da natureza, acabam piorando ainda mais as coisas.
            E por que persiste a conspiração? Por causa da ignorância e trevas que envolvem os habitantes do planeta. Se estudassem a fundo descobririam a verdade dentro do óbvio.  
            Presumamos, então, que, se a comunidade científica tudo faz para perpetuar a filosofia materialista, e o faz unicamente e exclusivamente para obedecer a seu dogma central ainda que fira as próprias e demonstráveis leis da ciência, toda outra conspiração menor seria possível. O problema é que, como na ciência, onde há leis demonstráveis, há também, nas contas da prefeitura, os fatos incômodos que apontam, como o implacável dedo acusador, a grande incompetência, para dizer o mínimo, na administração Luizianne Lins.
            Hoje já li, em determinado portal da rede mundial de computadores, que a “mentirosa” revista Veja vem esta semana com nova reportagem contendo cópias de documentos que comprovam os desmandos e a gastança do dinheiro público na prefeitura de Fortaleza. Como ainda não a li, fico por aqui.
            O que a equipe da prefeita e ela própria precisam entender é que ninguém, nenhum fortalezense, nenhum morador desta cidade gostaria que ficassem demonstradas a incompetência e a má gestão na prefeitura. Queremos paz; queremos que nossos homens públicos e gestores façam seu trabalho com vontade de acertar; queremos que eles acertem, e estamos dispostos a perdoá-los por seus erros enquanto tentam acertar. O que não queremos é a empáfia, o engano, a incompetência e o exercício irresponsável e leviano do poder. Apenas sonhamos acordados.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Suspiros

Muito me tocou saber que a promotora chorou em audiência pública em plena câmara municipal. Não viram? Pois chorou. Eu não vi, mas li nos jornais, dos quais só leio as manchetes. E, pelo que li, teria sido apenas um soluço, um engasgo emocional, um suspiro entrecortado. Durante a fala, discorrendo sobre o atraso a que uma criança era submetida em seu atendimento, a promotora segurou – ou melhor, não segurou – a emoção.
            Qual será o resultado prático disso? É certo que nenhum. Prático mesmo foi o Alex Mont’Alverne, secretário municipal de saúde, que conseguiu na justiça um habeas corpus preventivo que o isenta de participar dessas tediosas audiências públicas que examinam o caos na saúde do município. Para ele a saúde do município vai muito bem, obrigado. Não sei se seria o caso, mas difícil mesmo é colocar um mau e irresponsável gestor público na cadeia. Penso até que o senhor Alex Mont’Alverne exagerou. Secretário de governo não precisa de habeas corpus. Sua função já o blinda. Nós, reles mortais, é que suspiramos numa nostálgica depressão e numa tristeza cósmica.
            Suspiros de debochado tédio é o que deve estar a acometer a nossa excelentíssima prefeita Luizianne Lins. Desenha-se em seu horizonte próximo uma greve geral dos servidores municipais. São funcionários de vários órgãos e secretarias a se encontrar em assembléias para deliberar sobre aumento de salários. Ela deve estar a praguejar entre dentes: -“Lá me vêm esses chatos novamente!”
            Ia me esquecendo de uma do senhor Mont’Alverne. Ele disse, a propósito do relatório da comissão de saúde da OAB/CE, que “a situação [hoje] é completamente diferente de um ano atrás. Ela mudou drasticamente e radicalmente em relação ao relatório”. Presumimos, então, que em um ano a prefeitura mudou tudo na saúde. Das duas uma: ou o senhor Mont’Alverne está para ser internado na Casa Verde do Dr. Simão Bacamarte ou toda a comissão da OAB/CE o será. Cogito uma terceira e mais negra hipótese: toda a população de Fortaleza deverá ocupar a Casa. Seremos uma cidade dentro da outra, da Itaguaí do Dr. Bacamarte.
O senhor Mont’Alverne tem razão em determinado ponto. A coisa mudou radicalmente e drasticamente em um ano – está muito pior. Ele alega que Fortaleza gastou na saúde cento e cinqüenta milhões de reais a mais do que manda a Constituição. O que não sabemos é como ela gastou e que manobras contábeis utilizou para demonstrar isso. Mas os resultados são conhecidos de todos. E quando se fala nos incômodos resultados ele se sai assim: -“A saúde é complexa e cara. Não há medida capaz de sanar os problemas.” Pergunto: -“É mesmo, senhor Mont’Alverne?!” Parece ou não discurso de quem quer emendar um novo imposto, como o do pessoal do Planalto? Por que será que nossos gestores querem sempre aumentar a montanha de dinheiro que arrecadam?
Quando penso nisso tudo choro tanto quanto a promotora. Mas choro em casa mesmo, que não sou besta de chorar em público. Ademais, o meu pranto não se compara ao da autoridade. Choro o choro convulsivo, soluçante, corízico. Um rolo de papel higiênico não basta. Por isso concluo: o choro da doutora foi sincero, surdo e sofrido porquanto contido.  
E por falar em choros e suspiros, hoje foi um dia repleto deles. Desde cedo, pela manhã, no hospital, era um cafungado danado, uma fila de narizes endefluxados e pletóricos. Perguntava de mim para mim: -“Que será isso?” E eram uns aparelhinhos de TV ligados em todos os postos de enfermagem, com as mulheres ali penduradas como se hipnotizadas. Lá pelas tantas perguntei: -“Que é isso?” E responderam em coro: -“É o casamento do príncipe!” A coisa toda durou pela manhã e quase adentra a tarde. Foram tantos e tantos suspiros que até eu fiquei cansado. A conclusão fatal: tem gente a não mais poder no caritó. O casamento do príncipe foi uma punhalada nesse povo, mas por ele não choro, não. 

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Verdadeira mentira

A revista Veja, como dizem muitos amantes da verdade e muitos paladinos de nossos sérios e compenetrados homens – e mulheres! – de “esquerda”, mentiu mais uma vez. Espera aí. De fato, a revista mentiu várias vezes numa única vez. Quem não sabe o que digo que leia a reportagem que o semanário publicou em sua última edição sobre a nossa seríssima prefeita Luizianne Lins. É um rosário de mentiras.
            Certa vez escrevi sobre o que me parecia um absurdo – a prefeita de Fortaleza patrocinava festas populares caríssimas e faltava dinheiro para a manutenção de seu hospital mais importante. Tenho uma amada amiga que é prefeita de cidade do interior. Ao ler o que escrevi, ela comentou: se o prefeito não faz a festa o povo se revolta, fica furioso, não admite a vida sem as festas da prefeitura. Pensei: não sei nada de povo. E concluí que o prefeito deve fazer o que o povo quer.
            Hoje dei de cara, no hospital, com vários doentes internados. Dirá alguém que bebi, ou que me acometeu o surto de alguma doença mental. Tranqüilizo-os: nada bebi e, afora as imperceptíveis e ínfimas variações do dia a dia, a cabeça vai muito bem, obrigado.
No hospital IJF, do organograma municipal, uma extensa lista de doentes em pós-operatório, vítimas de trauma vascular, não é a regra. Mas eles estavam lá justo hoje, ainda sob a ressaca da muito bem pontuada e elegante resposta pública que a senhora prefeita e seus asseclas deram à revista Veja. A propósito, devo sugerir a ela e aos senhores que a assessoram que escrevam para a revista, se é que já não o fizeram. É quase certo que suas considerações serão publicadas. A revista mente, mas dá direito ao contraditório. Já tive oportunidade de ver várias de suas mentiras serem prontamente rebatidas por suas vítimas em suas próprias páginas. Essa revista só emprega gente maluca. E dizem que é golpista. Passou oito anos tentando dar um golpe de estado no governo do gordinho bêbado apedeuto salvador da pátria.  
Mas voltemos ao hospital. Muitos doentes: tiro, facada, colisão de motocicleta, acidente de trabalho, aterosclerose obliterante, etc. etc. etc. (No IJF os doentes não têm nome. São todos ou uma doença, ou um acidente, ou uma agressão.) Vamos trocar o curativo da colisão de motocicleta? Estão em falta gaze, atadura, esparadrapo, algodão ortopédico, etc. etc. etc. Procuremos o prontuário do paciente onde possamos relatar por escrito como ele está e escrever os medicamentos que se lhe devem administrar hoje, ler o relatório de sua operação, recapitular sua evolução nos dias precedentes, inteirar-se de seus exames, enfim, procuremos o documento legal importantíssimo que ele é.
O que acho? Prontuários desorganizados, sem capa – as capas estão em falta também – e contendo papéis avulsos a ponto de se perderem. Na ocorrência de um litígio o hospital sem documentos fica a ver navios e Sua Excelência, o juiz de Direito, pode facilmente punir a ambos, o hospital e o doutor, não sei lá por que motivo.
Finalmente consegui o relatório cirúrgico da colisão de motocicleta. O cirurgião operador da colisão relatou que fez a anastomose, na perna, da veia que serviria de enxerto com a artéria – anastomose é a emenda de uma à outra – com um fio cinco zeros, mais grosso, porque o fio ideal para isso que é o seis zeros, mais fino, está em falta. Direi apenas aos meus leigos leitores que uma anastomose delicada como essa deveria ser objeto de melhor trato. Afinal, dela depende a viabilidade da perna da colisão de motocicleta.
Resumamos. Falta de tudo no Instituto Dr. José Frota (IJF), hospital mantido pela prefeitura de Fortaleza, sob a gerência da seriíssima e excelentíssima prefeita Luizianne Lins, vítima inconteste da revista golpista que quer apeá-la do poder para lá empossar alguém de seu interesse. Os amantes da verdade saídos das fileiras da administração municipal garantem: seus fornecedores estão sendo pagos em dia. A prefeitura é a grande vítima dos fornecedores inescrupulosos. A grande verdade é que a prefeitura não gasta um centavo nas festas que promove.  
Se eu der ao meu ignorante filho de dez anos tudo o que ele quer e negar-lhe o mais importante, que pai serei eu? É precisamente essa a analogia que faço entre os pais de pequeninos e naturalmente ignorantes filhos e os prefeitos que administram a ignorância do povo. E os aconselho – se conselho fosse bom não se o dava, se o vendia –: façam o que precisa ser feito; não façam o que é irresponsável.
Penso seriamente em convidar um repórter de Veja para visitar o hospital. Quem sabe ele não engendra uma mentira escabrosa sobre ele? Como mentem com facilidade assombrosa, não lhes será difícil a tarefa. 

quarta-feira, 27 de abril de 2011

No caritó

               Ontem saímos a caminhar na orla João e eu, como é de praxe há já algum tempo. A corrida? O cooper? Ele foi, eu não. Não sei se lembram quando lhes escrevi sobre minha pubalgia. Lembram? Se não lembram, vamos lá.
            Estava a jogar futebol e senti, num lance, a fisgada ao pé da barriga. Foi uma coisa pouca, uma espécie de alfinetada. Passou. Continuei no jogo por mais uns poucos meses, até o dia em que senti o rasgão, como se meus músculos estivessem se esfiapando, no mesmo local. Era a tal pubalgia. Fiquei de molho por um longo tempo. De fato, ainda estou sem jogar, e nem sei se vai dar pra voltar. Eis aí o que lhes contei há não sei quanto tempo. As novidades vêm a seguir.
            Depois peguei um cotovelo de tenista. Nem tênis eu jogo, mas estava lá, em meu cotovelo direito, a lesão dos tenistas. Foi na musculação. Suspendi a musculação e cá estou, fraquinho da silva. Não levanto nem um saco com um quilo de algodão.
            Restava-me continuar a corrida na orla, ali na beira-mar, umas três vezes por semana. O diabo é que a gente vai pela cabeça dos outros, que nem piolho, e se dá mal. Os outros estão aí a correr feito doidos, seis, dez, vinte quilômetros. Estão querendo virar o Dean Karnazes. Não sinto a pubalgia ao correr, de modo que corria. Repentinamente veio uma dorzinha no joelho direito. Nada forte, mas que, com o tempo, passou a incomodar. Fiquei parado duas semanas, sem nenhum exercício. Na semana passada voltei a uma corrida leve, intercalada com caminhadas.
            Resumindo: sou o ultra-lesionado atleta. Resignação, paciência e repensar os limites, meus limites, foi o legado que me restou.
            Estou falando tudo isso por quê? Lembrei. O João avistou ontem, na orla, o Xavier, seu amigo do Direito. E repete, quando o vê, sempre o mesmo refrão: -“É o melhor implante do Ceará!”, referindo-se ao implante de cabelo a que seu amigo se submeteu. Com efeito, a cabeleira do Xavier está perfeita. Ninguém dirá, ao vê-lo pela primeira vez, que o homem tem cabelos postiços. A cabeça está plenamente coberta. Não lhe restou uma entrada, uma tonsura, uma brecha por onde se possa ver-lhe o couro. Vê-se bem que cuida zelosamente de seus fios. Está sempre bem penteado.
            Quando fui apresentado ao homem o João não hesitou: -“Xavier, o melhor implante do Ceará!” E desde então, ao encontrá-lo, repete: -“O melhor implante do Ceará!”
            E contou-me mais o João sobre o melhor implante do Ceará: tem medo de casar. Ou melhor: não quer casar. Já foi casado? Não sei. João não mo disse. Ou disse? Creio que disse. Ainda que tenha dito, não me lembro. Digamos que nunca tenha casado. Pois não casa nem a tiro. A pergunta que me faço é: por que fez o implante? Sabe-se lá. Hoje se atrai a fêmea para outras propostas. Antigamente a proposta era o enlace matrimonial. Hoje não.
            Cogito a possibilidade de o Xavier cultivar a cabeleira justamente para fugir ao assédio, já que a marchinha canta que os carecas são, com as mulheres, os maiorais. O Xavier quer, na hora do aperto, ser mesmo preterido em função de um careca. Faz sentido.
            Careca ou não, sabe muito bem o Xavier – e isso era assunto debatido com entusiasmo outro dia numa roda de varões vigorosos e entediados do casamento – que as mulheres de hoje estão tão sequiosas dos véus quanto antigamente, ao tempo da vovó. Mesmo as que já experimentaram malogradamente a vida conjugal não querem voltar ao caritó. Estão dispostas a casar quantas vezes forem necessárias.
Por isso foge o Xavier, dizendo-se disposto a também implantar quantos fios de cabelo precisar para manter sua cabeleira de Chitãozinho. Quer sempre ser preterido na hora do aperto. A ele só interessam, com uma mulher, os deliciosos momentos de lazer. É compreensível.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

O anti-amigo Padilha


Ligou-me o Padilha. Fez um rodeio danado e afinal foi ao assunto. Queria um atestado médico.
            O sujeito que é médico hoje em dia está vulnerável a uma lista infindável de inconveniências. Duas delas são dignas de nota por sua freqüência. A primeira é a “consulta de campo”; a segunda, o atestado mentiroso.
            Expliquemos o que seria o que resolvi chamar de “consulta de campo”. A consulta de campo é aquela em que a pessoa quer ser “consultada” em qualquer lugar, exceto no consultório. O que é o consultório? Ora, é precisamente o lugar onde o médico atende os pacientes. Atender pressupõe uma entrevista e um exame físico detalhados. Logo de cara se percebe que não é possível atender nem mesmo no corredor do hospital. Corredor de hospital é exatamente o mesmo que um corredor de qualquer lugar. O corredor é uma rua dentro de um edifício. Não é possível entrevistar e examinar um paciente em qualquer corredor, mesmo o do hospital.
            A consulta de campo é uma invenção das pessoas leigas, do brasileiro talvez. O brasileiro quer sempre dar um jeito de avacalhar as regras e de maquinar atalhos para tudo. Por isso pôs na cabeça que se pode facilmente chegar ao diagnóstico através do relato, no corredor, de um único sinal ou sintoma. Ele presume que o médico é um vidente, um médium, um adivinho. Outro dia na festa a mulher queria saber o que lhe causava certa dormência na ponta do dedão. Disse-lhe que corresse dali mesmo ao hospital mais próximo, pois poderia estar prestes a ser vítima de uma apoplexia. Desconheço se ela aceitou o meu conselho, mas seguramente lhe passei minha mensagem de indignação pessoal.
            A definição de atestado mentiroso se dispensa por ser a expressão auto-explicativa, mas acrescentarei veemência à palavra “mentiroso”. Ora, o que vem a ser alguém ou algo mentiroso? No pai dos burros da língua madre está a definição – é o “que diz mentiras”. Assim, o atestado mentiroso é aquele em que se diz uma ou mais de uma mentira – freqüentemente se dizem várias – , em que o médico afirma que o sujeito está doente sem ele estar, e assina embaixo. O atestado mentiroso é uma mentira por escrito. Seu autor não pode nem mesmo se dar ao luxo de, noutra mentira, negá-lo.
            Era esse o tipo de atestado que o Padilha me pedia, no intuito de se livrar de uma dívida não sei de quê nem com quem. Devo acrescentar o detalhe. Foi a própria instituição que lhe sugeriu o documento, porque só assim, diziam, poderiam lhe perdoar a dívida. Como foi a própria instituição que sugeriu a manobra ilegal, Padilha concluiu que não há problema algum em eu lhe fornecer o atestado. Eis aí o cenário de minha vicissitude.
            Reza o filósofo, orador, advogado e senador romano Marco Túlio Cícero que só é possível a amizade entre os virtuosos, e que o amigo é aquele que não pede o que o outro não pode, não quer ou não deve fazer. Aí está a base moral e filosófica para uma decisão de se emitir ou não o atestado mentiroso. E nem estou apelando ao código de ética médica, onde está explicitado o crime que é a emissão desse tipo de documento.
            Fica também óbvia a visão que muitas instituições têm sobre a classe médica – é a classe que mente, devem pensar. E já nem pensam somente. Afirmam.
            Disse ao Padilha que falaríamos pessoalmente sobre o assunto. Creio que não percebeu meu desconforto nessa procrastinação proposital. Ficou crente de que eu o forneceria, pois quis argumentar sobre o tema quando lhe dei uma resposta negativa ao nos encontrarmos. Pergunto: há controvérsia sobre a ilegalidade do atestado mentiroso? Não há. Não cabem aqui opiniões ou argumentos. É ponto pacífico.
Padilha quis argumentar. A emenda saiu pior que o soneto. Comecei a pensar seriamente e concluí – Padilha está mais para anti-amigo.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

OS ÁTOMOS DO SENHOR

"Não concordo com uma única palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-la." [François-Marie Arouet (Voltaire)]

            "A falsa ciência gera ateus; a verdadeira ciência leva os homens a se curvar diante da divindade." (Idem)

            Aviso de antemão – estou para adentrar em tema espinhoso. E o faço somente porque minha inteligência não permite que a aviltem com conceitos destituídos do sentido da razão e da ciência mais pura e cristalina. Digo tais coisas porque eu mesmo, durante certo tempo, estive embrutecido pela falsa ciência e falso conhecimento. A inocente inteligência, sob o peso de gritantes evidências, não se satisfaz com menos.
            Um amigo, confesso seguidor do espiritismo, por sua própria vontade e discernimento, quis me emprestar literatura pertinente. Eu, admirador e defensor do direito e liberdade à expressão das idéias, sejam elas quais forem, a peguei e a li.
Digo mais. Li com a mente aberta, como quem lê a demonstração da solução de uma equação do segundo grau, em que pese o fato de a matemática, com toda a sua abstração, não necessitar de conhecimento prévio para evidenciar suas verdades, ao contrário do assunto em pauta. Dito de outra forma, ler com a mente aberta é, antes de tudo, não impor resistência inicial ao conteúdo; é querer, já ao início, referendar como verdades as proposições colocadas; é querer acreditar, em suma. E é exatamente por isso que uma leitura com a mente aberta permite conhecer o peso da verdade e a leveza da mentira ou da falsa verdade tão logo uma delas se mostre inconfundível.
Partamos do princípio conciliável de que não seja necessário se admitir seguidor de nenhuma fé ou credo ou religião para se perceber, dentro de um determinado corpo doutrinário, falhas e rachaduras graves e comprometedoras. Esse é o tema que passo a abordar.
Em determinado ponto do livro, a título de exemplo dentre outros, como prova incontestável da existência do mundo espiritual e da realidade da comunicação entre vivos e mortos, o autor usou referência que certamente tem como confiável. Desconheço autor que queira provar suas teses utilizando más e/ou inconfiáveis referências. O autor nos transporta, então, ao Segundo Livro de Samuel da Bíblia Sagrada, em seu capítulo 28, que passo a transcrever em sua maior parte para que se entendam a tese do autor da literatura espírita e o nosso contraditório.
Já Samuel era morto, e todo o Israel o tinha chorado e o tinha sepultado em Ramá, que era a sua cidade; Saul havia desterrado os médiuns e os adivinhos.
Ajuntaram-se os filisteus e vieram acampar-se em Suném; ajuntou Saul a todo o Israel e acamparam em Gilboa.
Vendo Saul o acampamento dos filisteus, foi tomado de medo, e muito se estremeceu o seu coração.
Consultou Saul ao SENHOR, porém o SENHOR não lhe respondeu, nem por sonhos, nem por Urim, nem por profetas.
Então, disse Saul aos seus servos: Apontai-me uma mulher que seja médium, para que me encontre com ela e a consulte. Disseram-lhe os seus servos: Há uma mulher em En-Dor que é médium.
Saul disfarçou-se, vestiu outras roupas e se foi, e com ele dois homens e, de noite, chegaram à mulher; e lhe disse: Peço-te que me adivinhes pela necromancia e me faças subir aquele que eu te disser.
Respondeu-lhe a mulher: Bem sabes o que fez Saul, como eliminou da terra os médiuns e adivinhos; por que, pois, me armas cilada à minha vida, para me matares?
Então Saul lhe jurou pelo SENHOR, dizendo: Tão certo como vive o SENHOR, nenhum castigo te sobrevirá por isso.
Então, lhe disse a mulher: Quem te farei subir? Respondeu ele: Faze-me subir Samuel.
Vendo a mulher a Samuel, gritou em alta voz. E a mulher disse a Saul: Por que me enganaste? Pois tu mesmo és Saul.
Respondeu-lhe o rei: Não temas; que vês? Então, a mulher respondeu a Saul: Vejo um deus que sobe da terra.
Perguntou ele: Como é a sua figura? Respondeu ela: Vem subindo um ancião e está envolto numa capa. Entendendo Saul que era Samuel, inclinou-se com o rosto em terra e se prostrou.”
Creio me ter delongado em demasia, mas julguei necessário, como já disse, ao bom entendimento do que estou para propor. Esse trecho bíblico foi usado como prova da possibilidade da comunicação dos vivos com o espírito dos mortos.
Ocorre que no próprio trecho há uma informação valiosíssima: Saul, então rei de Israel, expulsara do país e enviara ao exílio os médiuns e adivinhos obedecendo ao que havia dito o SENHOR em Deuteronômio 18:10: “Não se achará entre ti quem faça passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro; nem encantador, nem necromante, nem mágico, nem quem consulte os mortos; pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao SENHOR; e por estas abominações o SENHOR, teu Deus, os lança de diante de ti.”  
            Vê-se, então, que o autor do livro que meu amigo me emprestou usou trecho bíblico que lhe servia a seu propósito, mas esqueceu de acrescentar que tal prática era terminantemente proibida pelo SENHOR. E esqueceu ainda mais, do Primeiro Livro das Crônicas, 10:13: “Assim, morreu Saul por causa da sua transgressão cometida contra os SENHOR, por causa da palavra do SENHOR, que ele não guardara; e também porque interrogara e consultara uma necromante”.
            Bem se vê que o autor crê em algo da Bíblia, mas não em tudo; crê na parte que lhe vem bem; usa o texto sagrado como fonte confiável e autorizada, mas não revela que a mesma fonte contém informações adicionais que esclarecem mais detalhadamente o assunto.
            Por quê?, essa é a pergunta que me faço até agora. Há uma ciência e um conhecimento corrompidos nesse tipo de publicação, mesmo que a pessoa em nada creia. Tomando o fato nu e a maneira como é exposta a “verdade” que quer demonstrar, há uma falta gravíssima e digna de nota e reflexão à luz das inteligências mais puras, imparciais e sequiosas. O que causa espanto e terror é a adoção e proliferação como verdade de incoerências e omissões monstruosas como a que lhes apresentei.
            Para que não fique sem resposta os inevitáveis questionamentos que se seguirão, há, no texto bíblico, inúmeras passagens que justificam a proibição do SENHOR  a tais práticas, como na Segunda Carta aos Tessalonicenses, 2: 9: “Ora, o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia de Satanás, com todo poder, e sinais, e prodígios da mentira”.

sábado, 2 de abril de 2011

Amigos picas-grossas

O problema com a vida, para os que aprendem de verdade e aplicam o que aprenderam, é que quando ela começa a ficar interessante não dá mais para fazer muita coisa. Para os que não aprendem e os que aprendem errado cogitam-se várias saídas, inclusive a de sair da vida “a pedido”. Outro problema é que, quando se é jovem – ou mesmo já não tão – pensa-se sempre que há um tempão pela frente, ao passo que quando se olha para trás no caso dos não tão jovens, o tempão que já passou parece um tempinho. Mais uns anos e se estará literalmente consciente de que não há mais tempo algum pela frente e que, de fato, para trás ficou apenas um tempinho de nada que mais se assemelha a um suspiro. Não sei se me faço entender.
            O caso é que estou a ver amigos de infância – sou dos sujeitos que mais colecionam amigos do tempo das fraldas – alçarem posições e feitos em suas áreas de atuação profissional, e se tornarem famosos por isso. Outro dia ligo a TV enquanto faço uma refeição e o que vejo? O meu querido e amado amigo Ricardo Lopes. Tornou-se presidente... não, não é assim. Tornou-se Presidente (com P maiúsculo) da Junta Comercial do Estado do Ceará. Estava a participar de um programa de TV local com outros dois cidadãos importantes. Enchi-me de orgulho e empáfia por ver aquele garoto de anos passados ter chegado onde chegou. Em criança brincava de calção e pés descalços, as unhas dos dedos rachadas de tanto dar chutes nos paralelepípedos das calçadas e ruas da nossa provinciana Fortaleza. Agora, ali estava ele engravatado num terno de fino corte respondendo a questões cruciais sobre a repartição que preside.
            Perguntará alguém: e daí? E direi: continua o mesmo Ricardo, o mesmo garoto, a mesma pessoa em sua índole de homem de bem, porque foi criança de bem. Teve berço, teve escola. Teve família, e ainda agora a tem. Tem ainda apelido, que aqui e agora não convém revelar posto que aos íntimos se o reserva.
            Passou.
            Dias depois, talvez um mês, um mês e pouco, ligo novamente a TV para uma refeição – para mim a TV é um digestivo muito leve, quase uma enzima salivar – e quem vejo? No mesmo programa, em debate jornalístico, vejo o meu querido e amado amigo José Dias, Presidente do Sindicato das Indústrias Químicas etc. etc. etc. do Estado do Ceará. E discutiam, ele e outros importantes senhores, sobre a implantação da refinaria da Petrobrás aqui no estado. O Zé – os amigos o chamam Zezinho – é amigo de longa data. O chato perguntará novamente: e daí? Direi, repetindo: continua o mesmo Zé, o mesmo Zezinho. Sua essência guarda o mesmo aluno levado e brincalhão que foi um dia, ao tempo das merendeiras escolares. Meu orgulho e peito estufado cresceram ainda mais. Se se desabotoar o elegantíssimo terno do Zezinho e se o observar estará lá, sob ele, o mesmo Zezinho de sempre.   
            Para esses amigos – e outros que ainda verei na TV – nosso tempo foi bem curtinho, porquanto o que é bom parece não durar, ou queremos que dure para sempre. Ali na frente, qualquer dia, nos encontraremos como antes, os mesmos meninos levados que vestem paletós e gravatas que insistem em não crescer, ainda tentando brincar como meninos descalços e sem camisas, nus de pedantismo e falsa sisudez, alegres e livres.
            Se pensarmos melhor, que bom que é assim com esses dois exemplares de estirpe. Para falar a verdade, é exatamente por isso que são de elevada estirpe. Não sucumbiram ao estrelismo e à vaidade de suas posições. Por baixo do terno há uma criança ainda sagaz e sedenta de alegria e amor pelas pessoas. Continuam nutrindo os que os amam, como eu, de orgulho e desejo de mais sucesso e vitórias; continuam a fazer parte dos que sabem que o mais importante não são seus carros, seus paletós, seus bens e sua fama; sabem que o mais importante são as pessoas.
            É verdade que tenho outros bons e grandes amigos mais recentes que galgaram postos de importância e evidência. São deputados, vereadores, secretários de estado, prefeitos, políticos de uma forma geral. É bom saber que por debaixo de suas roupas de grife há ainda o homem ou a mulher com quem se brinca numa conversa informal e que se dispõe a ouvir a opinião de alguém. Oxalá continuem assim, e que também se empenhem com verdadeira vontade a mudar a maneira de se fazer política nesse Estado fazendo, eles próprios, essa mudança tão esperada.

O NARCISO DO MEIRELES

Moravam numa bela casa no Parque Manibura.  Ela implicava com ele quase que diariamente. Era da velha guarda, do tempo em que o homem saía c...